Desde o início do ano, a pecuária brasileira tem navegado por um mar revolto e turbulento. Os fatos recentes que macularam o setor após a deflagração da Operação Carne Fraca, em março, levaram ao que já era esperado: o mundo está de olhos bem abertos ao sistema de inspeção sanitária no País, responsável por liberar toda proteína animal embarcada nos portos brasileiros. E não é pouca: no ano passado foram 6,7 milhões de toneladas de carnes, entre bovina, suína, de frangos e de outros animais, por US$ 14,2 bilhões. Apenas de carne bovina, que no ano passado faturou US$ 5,3 bilhões, os embarques de 2017 já somam 651,8 mil toneladas por US$ 2,6 bilhões. Não por acaso, em junho, o Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (Usda, na sigla em inglês) suspendeu a entrada de carne bovina brasileira, por desconfiar da qualidade do produto. O mote? Gânglios e nódulos encontrados em parte das peças embarcadas, uma possível reação do organismo dos animais à aplicação da vacina contra a febre aftosa. O fato engrossa o caldo de uma discussão que não é nova no País: o Brasil está preparado para suspender a vacinação contra essa doença altamente contagiosa, introduzida por aqui nos anos 1890, com a entrada de gado europeu? Quais seriam as consequências para o maior rebanho comercial do mundo, de 217,5 milhões de bovinos, ao não receber anualmente as salvadoras doses de cinco mililitros de medicamento? “Risco zero não existe, mas o País já está preparado há muitos anos para suspender a vacinação”, diz Sebastião Guedes, presidente do Grupo Interamericano para Erradicação da Febre Aftosa (Giefa), e vice-presidente de Relações Internacionais do Conselho Nacional da Pecuária de Corte (CNPC). “Temos 12 Estados e o Distrito Federal que há mais de 20 anos não apresentam foco de aftosa, onde estão 118 milhões de animais, entre bovinos e bubalinos. E temos nove Estados sem foco, entre 15 e 20 anos. São mais 41 milhões de animais.” Para João de Almeida Sampaio Filho, diretor de Relações Institucionais do Minerva Foods, grupo que no ano passado faturou R$ 10,2 bilhões, deixar de vacinar o gado é uma decisão que precisa ser melhor analisada. “Antes de pensarmos na erradicação da vacinação, poderíamos melhorar a vacina, com uma que só precisasse ser aplicada uma vez ao ano”, diz ele. “Também são necessários mais estudos para definir uma ação homogênea na América do Sul. Ainda há uma série de mudanças que precisam ser feitas em conjunto.”

Exportação: os embarques de carne bovina renderam
ao Brasil R$ 2,6 bilhões desde o início de 2017 (Crédito:MÁRCIO FERNANDES)

A febre aftosa, embora raramente leve o gado a óbito, ou seja transmitida a humanos, pode trazer prejuízos gigantescos por tornar economicamente inviável o comércio do animal infectado. O medo com as consequências de surtos, caso a vacinação seja suspensa, ainda habita na memória dos pecuaristas. A mais recente catástrofe, com focos da doença no Rio Grande do Sul, Paraná e em Mato Grosso do Sul, nos anos 2000, fez com que 56 países embargassem a carne brasileira. Somente os sul-mato-grossenses gastaram R$ 30 milhões para erradicar 33 focos da doença, com o sacrifício de cerca de 33 mil animais. Hoje, as despesas do País para controlar a doença são estimadas em cerca de R$ 2 bilhões anuais. No caso dos Estados Unidos, o Brasil pedia o direito de exportar carne in natura para o país desde 1999, o que foi aceito no ano passado. De uma cota negociada de 64 mil toneladas anuais, conseguiu embarcar apenas 11,7 mil toneladas por US$ 49 milhões, até ser pego na fiscalização. Mas é fato que o Brasil pode ter ganhos financeiros com o fim da vacinação. Por exemplo, com a abertura irrestrita do mercado asiático, onde a carne livre de vacinação é mais valorizada. “Japão, Coreia do Sul e Singapura pagam um alto preço pela carne de locais sem a febre aftosa”, afirma Guedes. “O Japão paga US$ 20 mil por tonelada de língua bovina vinda de país sem vacinação. O Brasil vende esse corte para outros países por US$ 4 mil.”

Nos últimos anos, e mais especificamente agora, a vacina tem gerado atrito entre represtantes das associações de produtores e a indústria frigorífica de um lado e, de outro, setores da indústria de saúde animal. Entidades como a Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), a Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (Abiec), a Associação Brasileira de Frigoríficos (Abrafrigo), a Associação dos Criadores de Mato Grosso (Acrimat), a Sociedade Rural Brasileira (SRB) e CNPC reclamam que ela é ultrapassada. A fórmula oleosa criada em 1993, em substituição à vacina aquosa, contém um componente chamado saponina, causador dos nódulos na carne vendida aos americanos. “A reação à vacina oleosa foi a principal causa do embargo”, diz Guedes. Emílio Carlos Salani, vice-presidente executivo do Sindicato Nacional da Indústria de Produtos para Saúde Animal (Sindan), afirma que a saponina é apenas um indutor de imunidade. “O problema pode ser oriundo de erros na vacinação ou na toalete das peças de carne”, diz Salani. “Já vi gente vacinando gado na costela e tem quem queira vacinar na prega caudal, quando o correto é na tábua do pescoço.” Em meio à troca de farpas, no final do mês passado, o Mapa decidiu abolir a substância, mas isso é só o começo. Outra medida foi a adesão do Brasil à proposta da criação de um banco de antígenos e vacinas para a América Latina. De acordo com Guilherme Marques, diretor do Departamento de Saúde Animal do Mapa e presidente da Comissão Sul-Americana para a Luta Contra a Febre Aftosa (Cosalfa), a medida dará segurança ao setor. “O banco vai permitir enfrentar problemas futuros, após a retirada da vacina”, diz Marques. “E contribuir para aquelas nações que não tenham à disposição doses do produto em quantidade suficiente para imunizar seus rebanhos.”

CALENDÁRIO Até o ano de 1992, o Brasil apenas controlava a doença. A partir desta data, começaram os planos de erradicação. A mais recente revisão do plano estratégico do Programa Nacional de Erradicação da Febre Aftosa (PNEFA) foi apresentada pelo Mapa no mês de abril para o período de 2017 a 2026. Um dos principais pontos é a suspensão total da vacinação, entre os anos de 2019 e de 2021, e o reconhecimento da Organização Mundial de Saúde Animal (OIE), como país livre da doença em 2023. O Brasil foi dividido em cinco regiões e o início do processo deve ser nos Estados de Rondônia e do Acre. “Maio de 2018 é a data indicada para a erradicação da febre aftosa no País. Neste ano, 99% do rebanho estarão livres com vacinação, com reconhecimento internacional da OIE, mais Santa Catarina que já é livre sem vacinação”, diz Marques. É essa conta que tem levado setores da pecuária à justificar a suspensão da vacina.

Risco zero não existe, mas o País já está preparado há muitos anos para suspender a vacinação” Sebastião Guedes, presidente do Giefa (Crédito:L.ADOLFO/AE/AE )

Mas as datas apresentadas pelo Mapa se chocam com o calendário sugerido pelo Sindan. “Não somos contra parar de vacinar”, diz Salani. “Mas quando a vacinação terminar, nós fecharemos as indústrias porque elas não são de multipropósito.” Trocando em miúdos, a indústria veterinária sinaliza ao governo que não manterá fábricas de vacina em atividade. Caso haja algum foco da doença, o País não teria como vacinar os animais. Hoje, as vacinas contra a aftosa geram uma receita de R$ 400 milhões às farmacêuticas de produto animal, setor que fatura R$ 5 bilhões por ano. “Nós já informamos ao governo que no dia que suspender a vacina no Acre e em Rondônia, fecharemos as torneiras para estes Estados. Caso haja um problema será necessário um estoque de vacina e não de antígeno, como indica o governo”, afirma Salani. “Por isso, o Sindan indica a suspensão das vacinas somente a partir de 2021.” Outro empecilho é a medida da dosagem, que deve diminuir para dois mililitros daqui para a frente, menos da metade da dose atual. Hoje são cinco mililitros, contendo os sorotipos contra os vírus do tipo A, C e O da doença. O Mapa autorizou a retirada do vírus C, que está erradicado mundialmente. De acordo com Salani, a indústria entregaria ao governo as partidas com a nova dosagem em abril do próximo ano, para aprovação até novembro. “Devemos ter as vacinas de dois mililitros em maio de 2019”, afirma o executivo.

Uma imposição do governo, de cima para baixo, dificilmente dará resultado” Pedro de Camargo Neto, vice-presidente da SRB (Crédito:Karime Xavier/AG.ISTO)

De acordo com Pedro de Camargo Neto, vice-presidente da SRB, e uma das lideranças mais ativas a partir dos anos 1990, época em que o Brasil decidiu que deveria erradicar a doença, o Mapa não deve exigir que o setor pare de vacinar o gado. “Uma imposição do governo, de cima para baixo, dificilmente dará resultado”, diz ele. Camargo Neto faz parte da geração de lideranças que criaram o Fundo de Desenvolvimento da Pecuária do Estado de São Paulo (Fundepec), em 1991 , depois levado a outros Estados. No ano de 1994, dos 159 milhões de bovinos e bubalinos, 64% eram vacinados. Em 2001, pela primeira vez, o porcentual ficou acima de 90% para o rebanho que à época era de 170 milhões. “Criamos uma campanha de vacinação, vigilância sanitária, controle de trânsito dos animais e cadastro do rebanho com recursos bancados pelos produtores”, afirma Camargo Neto. “Mas isso ocorreu porque os pecuaristas entenderam que perderiam muito dinheiro se não pagassem pelo serviço e porque o movimento foi construído de baixo para cima, entre produtores e veterinários.” Já no plano do PNEFA, segundo Marques, o valor e como ele será arrecadado é uma discussão aberta. Mas ele indica algo próximo de R$ 100 milhões ao ano, a serem bancados pelo setor privado e pelos produtores de gado. “Essa conversa deve ir até o fim de 2017”, afirma Marques.