O International Chocolate Awards, a principal competição mundial de chocolates premium, era inacessível para os produtos brasileiros até o final de outubro de 2016. Na sexta-feira 14, em Londres, a premiação global consagrou, pela primeira vez, uma marca nacional. A Nugali, da cidade de Pomerode, em Santa Catarina, recebeu a medalha de bronze pelo Serra do Conduru 80% Cacau, na categoria dos produtos puros.

Para ser avaliada nessa etapa final, a Nugali ganhou a prata na classificatória regional, que engloba Américas e Ásia Pacífico, que aconteceu em maio. Mais do que um reconhecimento ao fabricante, essa é a vitória da matéria-prima. Há cerca de 12 anos, a marca catarinense utiliza um cacau gourmet produzido em Ilhéus, na Bahia, pelo cacauicultor João Tavares. “Os premiados são as Ferrari dos chocolates, o que comprova a alta qualidade do cacau produzido pelo João”, afirma Ivan Blumenschein, diretor de produção da Nugali. “Fomos os primeiros chocolateiros no Brasil a trabalhar com a amêndoa dele e perceber esse valor agregado, de terroir único.”
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Os esforços de João Tavares para produzir um cacau comparável aos melhores do mundo extrapolam as fronteiras do País. O francês Alain Ducasse, um dos principais chefs da gastronomia contemporânea, que coleciona 19 estrelas do Guia Michelin, utiliza as amêndoas produzidas pelo brasileiro na sua Le Chocolat, considerada a meca do chocolate na França. A aproximação entre eles aconteceu em 2010, quando Tavares venceu o “Cocoa of Excellence”, da região América do Sul, premiação anual que acontece no Salão do Chocolate, em Paris. O resultado foi considerado uma “aberração” pelos críticos internacionais, que não entendiam como Venezuela, Colômbia ou Peru, países com mais tradição na produção do cacau gourmet, tinham sido superados por um produtor do Brasil.

Ducasse, ao contrário, demonstrou interesse num produto, até então, forasteiro, e pediu a Tavares algumas amêndoas para fazer testes. Os resultados foram surpreendentes e, desde então, o chef francês é um de seus principais clientes. Com essa matéria-prima brasileira, Ducasse criou a barra Brazil Forastero Blanco 75%. “O único cacau que conseguimos trabalhar, no Brasil, é o do João Tavares, considerado um dos melhores do mundo”, diz Nicolas Berger, parceiro de Ducasse há mais de 15 anos. Em tempo: em 2011, Tavares tornou-se o único produtor mundial a ser premiado na “Cocoa of Excellence” por dois anos seguidos.

Brisa leve: O processo de secagem das amêndoas de João Tavares são feitas ao sol e privilegiam a ventilação, para evitar a formação de mofo externo
Brisa leve: O processo de secagem das amêndoas de João Tavares são feitas ao sol e privilegiam a ventilação, para evitar a formação de mofo externo

Neto do imigrante português Avelino Luiz Fernandes, que começou uma plantação de cacau no sul da Bahia, no início do século XX, João Tavares formou-se em administração de empresas para cuidar dos negócios da família. Até o final dos anos 1990, o Brasil era o maior exportador mundial, com uma produção que atingiu as 350 mil toneladas, no seu auge. Com três fazendas, a Leolinda, a Angélica e a São Pedro, o herdeiro do “seu Avelino” era um dos maiores plantadores de cacau do Brasil.

Na época, a preocupação dele era com a quantidade e não com a qualidade das amêndoas. Tudo isso sofreu uma reviravolta com a introdução criminosa (como ficou provado) da vassoura-de-bruxa, praga que dizimou as lavouras e reduziu a produção nacional para menos de um terço. Nesse período, muitos produtores simplesmente desapareceram por não conseguir eliminar o fungo que apodrece o fruto e a planta.

João Tavares evitou a falência, mas deu início a um processo de reinvenção do seu negócio. “Dificilmente teríamos, novamente, a mesma produção e produtividade”, diz ele. “Ficou claro para mim que era preciso agregar valor à matéria-prima e verticalizar a produção. Ou seja, tive de ir buscar a qualidade para conseguir um cacau gourmet.”

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Paladar premiado: A catarinense Nugali ganhou medalha de bronze na principal competição mundial de chocolates. “Isso comprova a qualidade do cacau do João”, diz Blumenschein

Esse período não foi rápido, muito menos fácil. João Tavares teve de pesquisar, validar informações sobre os processos de fermentação e secagem do cacau e, principalmente, realizar vários testes. Foram cerca de dez anos de experiências, com acertos e erros. Mas, o que ele fez de revolucionário, foi desenvolver uma tecnologia própria para conseguir suprimir os defeitos do cacau brasileiro e enaltecer suas qualidades. Muitos tratam essa parte como o principal segredo do sucesso de Tavares, mas ele explica com naturalidade como e por que chegou a essa metodologia. Para a fermentação das amêndoas, ele trocou os tanques quadrados ou retangulares por cilíndricos. Com isso, elimina as imperfeições provocadas pelos cantos, que não permitem que o calor seja distribuído de forma uniforme para todas as amêndoas. Em seguida, no processo de secagem, utiliza uma plataforma elevada e ventilada, chamada de barcaça, onde as amêndoas ficam arejadas e expostas ao sol, sem o risco de desenvolverem mofos externos. “Desenvolvi essa tecnologia para convencer o mercado internacional da qualidade do cacau brasileiro”, diz Tavares. “Mas não tem segredo, é a seleção, a fermentação e a secagem.”

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Bendito ao fruto: Além dos frutos maduros, os cacaus produzidos por João Tavares são aberto com extremo cuidado para evitar qualquer dano à amêndoa, que deve ser perfeita para ir para a fermentação

A simplicidade com que João Tavares explica o seu trabalho esconde, muitas vezes, os cuidados que ele tem com o fruto. A seleção do cacau começa na colheita dos três tipos utilizados por ele, plantados numa área total de 340 hectares: o pará, que é nativo da Amazônia brasileira; o catongo e o scavinia, provenientes de cruzamentos. Ele é rigoroso e só aceita frutos perfeitos. Os cuidados continuam quando o cacau é aberto e as amêndoas destacadas. Nenhuma imperfeição é aceita. As amêndoas devem ir intactas para os tanques cilíndricos de fermentação. “Ele é pioneiro nos estudos e nos cuidados com o cacau, uma seleção criteriosa que só aceita frutos maduros e sadios”, diz Luciana Lobo, chocolateira e consultora, que visitou as fazendas pela primeira vez em 2010.

Le “brazilien”: as ganaches produzidas pelo chef Alain Ducasse utilizam parte do cacau brasileiro de João Tavares
Le “brazilien”: as ganaches produzidas pelo chef Alain Ducasse utilizam parte do cacau brasileiro de João Tavares

No final do processo, que demora cerca de 20 dias (o industrial não passa de quatro dias), é feita a padronização por peso e tamanho, que varia de 0,8 a 1,3 grama. Com isso, Tavares consegue um prêmio que varia de 70% a 100% sobre o preço médio de venda da arroba do cacau, que gira em torno de R$ 150 na Bahia. Da produção anual de cerca de 150 toneladas, ele consegue 100 toneladas de cacau de excelência, o que faz dele o maior desse tipo no Brasil. “O cacau comercial não é sustentável”, diz Tavares. “O gourmet é uma revolução no mercado brasileiro, algo que já acontece lá fora. Na Venezuela, por exemplo, existe há 150 anos. Agora está pegando corpo por aqui e eu torço para que cresça mais.”

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Toque refinado: Nicolas Berger (à esq.) e Alain Ducasse definem as amêndoas de João Tavares como uma das melhores do mundo. A barra com o chocolate produzido com a matéria-prima do brasileiro recebeu o nome de Forastero Blanco, uma homenagem à maneira que eles se conheceram no Salão de Paris

Se depender dos cacauicultores da mesma região, Tavares não tem com o que se preocupar. Cerca de 40 utilizam-no como referência para conseguir um cacau fino. Alguns nomes estão se destacando no mercado, como os jovens Diego Badaró e Leandro Reis de Almeida. A diferença entre eles é que, ao lado da plantação de cacau, Badaró e Almeida produzem o próprio chocolate premium, das marcas Amma Chocolates e Mendoá, respectivamente. Tavares segue como o desbravador da qualidade da matéria-prima do cacau brasileiro, mas escolheu vendê-la para os chocolatiers. Ele, aliás, decide quem terá acesso ao seu produto. Além de Ducasse e da Nugali, o belga Pierre Marcolini, a chef carioca Samantha Aquim e Juliana Motter, da Maria Brigadeiro, são alguns dos privilegiados.

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A venda de amêndoas para a Maria Brigadeiro é outra quebra de paradigma de João Tavares. Produtores de cacau vêem o brigadeiro como um doce menor e, por isso, com direito a utilizar apenas produtos industriais. Tavares enxerga exatamente o oposto. “Sou uma formiguinha, adoro doce, e o brigadeiro é o chocolate brasileiro na sua essência”, diz ele. Por isso, nada mais natural do que atender Juliana, que foi a pioneira na criação do brigadeiro gourmet, em 2007. Ela defende o produto fresco, finalizado na hora, com ingredientes novos e artesanais. É das poucas que prefere derreter o chocolate na panela ao invés de usar o achocolatado para fazer o brigadeiro. Para dar certo, ela precisa controlar a matéria-prima. Vem daí sua aproximação com João Tavares. Juliana montou uma pequena fábrica nos fundos de sua loja, no bairro paulistano de Pinheiros. A capacidade de produção é de 50 quilos por dia, que viram barras de chocolate ao leite (45% cacau), chocolate branco (100% manteiga de cacau) e chocolate intenso (75% cacau) – os dois últimos lançados no final de outubro. Tudo, claro, produzido com as cinco toneladas da matéria-prima que ela compra anualmente de João Tavares. “O João só vende para o chocolateiro que valoriza a amêndoa”, diz Juliana. “Muitas vezes ligo para ele, que está no meio dos cacaueiros, e recebo fotos dos ‘meus’ cacaus. Temos os mesmos princípios, de valorizar a tradição.”

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