“Por cima do povo, surgia o grande chapéu de sol vermelho, rodando, oscilando, curvando-se. E o batuque cada vez mais perto. Dali a pouco desfilava o cortejo real dos negros. Vinha o rico estandarte com cores vivas e bordado a ouro. Seguiam-se as alas de mulheres ostentando turbantes, saias bem rodadas, corpetes enfeitados de vidrilhos. Traziam fetiches religiosos nas mãos. Depois, o rei e a rainha, em trajes majestosos, debaixo da ampla umbela de seda encarnada com franjas douradas. Empunhavam os cetros, vestiam longos mantos e tinham cabeças coroadas. Na retaguarda do préstibo, os atabaques, as marimbas, os congás, os pandeiros, as buzinas… As canções que todos entoavam eram ordinariamente nostálgicas, como uma ancestral saudade da terra de berço, ficada tão distante.” Assim, o escritor pernambucano Mário Sette descreve o maracatu, uma das danças mais populares do Nordeste, no livro Maxambombas e maracatus, de 1935.

Hoje, mais de 130 grupos preservam essa manifestação cultural que tem a sua origem ligada aos engenhos de cana-deaçúcar e às usinas da zona rural de Pernambuco, o chamado maracatu rural. Segundo a Secretaria Estadual de Cultura, 80% desses grupos se localizam em municípios da Zona da Mata – área próxima do litoral, que se estende de  norte a sul do Estado –, e 20% estão em bairros da periferia de Recife. “O maracatu está em toda a parte. É bonito de se ver e transmite uma sensação de força, de entusiasmo”, diz José Iromar Vieira, escriturário da usina Laranjeira, em Vicência, município a 90 quilômetros de Recife.

Vieira, além de funcionário da usina, é produtor cultural e tesoureiro da Associação dos Filhos e Amigos de Vicência, entidade que administra o sítio histórico do engenho Poço Comprido. O engenho, que faz parte da usina Laranjeira, é um dos mais antigos do Nordeste. Nele está abrigada a única construção preservada do século 18 no País, em que a capela e a casa grande formam um só edifício. O conjunto arquitetônico inclui ainda a senzala e foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) há 50 anos, tornando-se um dos pontos turísticos do Estado. Mas a usina não vive apenas dessa atividade. Ela continua produzindo açúcar e melado de cana para o mercado interno e também para exportação.

 

Ritual: dançarinos abrem caminho na lavoura para a trupe passar.

 

No engenho Poço Comprido, as tradições são guardadas

 

A relação entre o diretor-geral da usina Laranjeira, Alexandre Pontes, um dos três proprietários do engenho, e a associação que administra o sítio histórico é recente. A associação foi criada há oito anos, tendo como uma de suas missões tomar conta dessa herança da usina: a casa grande, a senzala e a capela. “Há um comodato entre as partes”, diz Vieira, que já foi presidente da entidade. “A tarefa da associação, além de preservar a arquitetura do lugar, é promover a cultura, como os folguedos populares.” Além do maracatu rural, há outras manifestações de dança apoiadas pela organização, como o mamulengo e o coco de renda.

Em geral, nos festivais promovidos pela associação, enquanto no engenho acontecem as oficinas culturais e as palestras, a praça da cidade recebe os grupos de dança. Na edição mais recente do festival, em abril, apresentaram-se oito grupos de folguedos populares. Entre eles, três eram de maracatu rural: o Leão da Serra e o Estrela de Jacy, este formado por crianças de uma escola de Vicência, e o Estrela de Ouro, do município vizinho de Aliança. “O público compareceu em peso, vindo das cidades e das fazendas da região, além de turistas de outros Estados”, diz Vieira.

Mas se engana quem pensa que todos os maracatus sãoiguais e que a apresentação dos grupos se diferencia apenas pela indumentária exacerbadamente colorida. O maracatu se divide em dois grupos distintos: o maracatu nação, ou de baque virado, e o maracatu rural, ou de baque solto. O nação, segundo os historiadores, teria surgido durante a escravidão, entre os séculos 17 e 18, nas cidades de Recife, Olinda e Igarassu. A hipótese é de que a dança tenha surgido a partir das coroações e autos do rei do Congo, trazidas ao País pelos portugueses e, por isso, permitida aos escravos. Por quase dois séculos, esse maracatu esteve restrito aos becos e quase esquecido. Mas foi resgatado na década de 1990, em um movimento musical surgido no Recife com nomes como o do artista Chico Sciense, do grupo Nação Zumbi, e da banda Mestre Ambrósio.

 

Na praça: grupo se apresenta durante o festival organizado pela Associação dos Filhos e Amigos de Vicência

 

O maracatu rural nasceu no século 19, na região canavieira da Zona da Mata. Somente em Nazaré da Mata, outro município da região, há cerca de 30 grupos de maracatu rural. Para a antropóloga americana Katarina Real, uma apaixonada pelo folguedo brasileiro, o maracatu é uma mistura de várias manifestações populares do interior de Pernambuco, como a das pastorinhas, das baianas, do caboclinho, da folia de reis e do cavalo-marinho.

Uma das versões sobre o surgimento do maracatu rural conta que os personagens centrais dessa dança, Mateus e Catirina, estavam perdidos numa floresta. Famintos e com sede, ele perambularam por dias a fio, antes de serem salvos por um caçador e por sua mula Calu. Os três se tornaram amigos. Por isso, todas as vezes que o caçador visitava Mateus e Catirina, o casal fazia em seu louvor uma festa na fazenda, com dança e música. Nesse maracatu, os dançarinos brincam em círculos, tendo ao centro o estandarte, o rei, a rainha, a porta-bandeira e a dama do paço. Rodeando o pequeno grupo vêm as chamadas damas-debuquê, com ramos de flores, as bonecas e os caboclos de pena. Na frente, abrindo espaço para a trupe passar, vão os caboclos de lança, empunhando suas “armas” em madeira torneada, que eles seguram com as duas mãos e as agitam para cima e para baixo. “O espetáculo é de um colorido intenso, que a gente demora para esquecer”, diz Vieira. “A imagem fica grudada no cérebro.”