O sentimento de frustração e revolta dos consumidores com a paralisação repentina dos voos da companhia aérea ITA, do Grupo Itapemirim, carrega uma questão básica: como é que deixaram uma empresa chegar a uma situação dessas, causando transtorno a milhares de pessoas em todo o País, de um dia para o outro?

O setor aéreo é regulado pela Agência Nacional de Aviação (Anac). Cabe à agência fiscalizar o funcionamento deste segmento, suas empresas e garantir a sua operação plena. É o que ocorre em outros setores, como, por exemplo, o elétrico, que é fiscalizado pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e o de transportes, com a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT).

Até o momento, a Anac limitou-se a declarar que foi informada ontem pela empresa aérea Itapemirim Transportes Aéreos (ITA), por volta de 18h, sobre a “suspensão temporária das operações no Brasil devido a uma reestruturação interna”. A Agência informou que determinou que a empresa aérea prestasse imediato atendimento integral a todos os passageiros e comunicasse, individualmente, sobre cancelamento de voos e reacomodações, bem como garantisse o reembolso das passagens aéreas comercializadas.

A agência afirmou ainda que a segurança das operações aéreas é sua prioridade e que, devido à paralisação das operações da empresa, suspendeu o seu Certificado de Operador Aéreo (COA). Mas será que não dava para ter feito isso antes?

A reportagem ouviu um ex-diretor da agência sobre este assunto, que preferiu ter seu nome sob sigilo. O que ele relatou é que o papel da Anac, de fato, está concentrado na garantia de segurança da operação de cada companhia aérea, sejam aquelas que estão em atividade ou novas empresas que ingressem no setor.

A avaliação da agência, segundo este ex-diretor, é a de que se trata de uma situação de livre mercado. No caso da ITA, a empresa passou por um processo rigoroso para conseguir operar, envolvendo várias etapas de análise pela Anac.

A análise da capacidade financeira da companhia aérea chegou a ser feita pela agência, mas de forma bastante limitada. Como era uma empresa que vinha de um processo de recuperação judicial de seu grupo, a Anac chegou a tomar algumas precauções e prestou informações, inclusive, ao Congresso Nacional.

No início das operações da ITA, a empresa chegou a vender mais passagens do que assentos disponíveis em seus aviões. Naquela ocasião, a agência chegou a agir para controlar de perto a venda de passagens da empresa.

O especialista avalia, no entanto, que a questão da saúde financeira da empresa acaba sendo um tema com atuação restrita à agência. “Cabe à agência exigir segurança. Sobre a situação financeira, é preciso entender que se trata de um mercado de capital intensivo. Infelizmente, empresas deste setor quebram em todo o mundo”, diz este ex-diretor.

O especialista lembra que a empresa, mesmo com as dificuldades que tinha, conseguiu fazer contratos de leasing de suas aeronaves, oferecidas por grandes empresas do setor que apostaram na operação.

Para Felipe Bonsenso, sócio da Bonsenso Advogados e especializado em aviação, a Anac cumpriu seu papel no processo de certificação da ITA, que fez tudo o que é exigido pela legislação. “Mesmo que eventualmente soubesse da dificuldade da empresa em ir para frente, ela não poderia recusar a autorização operacional”, afirma Bonsenso.

Para o especialista, uma interferência desse tipo só poderia ser feita somente se existisse no Brasil uma lei exigindo um capital mínimo, um fundo de reserva ou algo nesse sentido.

André Castelani, sócio da Bain & Company, vai na mesma linha. “A Anac olhou o lado técnico para autorizar a operação da nova empresa, que cumpriu com todas as exigências, mas ao longo dos seis meses, a ITA ficou fragilizada e deixou de cumprir acordos”.

Segundo ele, a Anac não faz um acompanhamento financeiro das companhias, mas a regulamentação e o acompanhamento da prestação de serviços. “Pode ser que para novos passos tenha uma nova legislação nesse sentido.”

Concorrência – Quando foi anunciada, a chegada da Itapemirim ao mercado trouxe alívio ao Conselho de Administração e Defesa da Concorrência (Cade), de acordo com uma fonte próxima ao órgão antitruste. Isso porque, há alguns anos, a autarquia autorizou uma série de fusões e aquisições no setor, uma medida que, na época, gerou polêmica. A avaliação agora é a de que o trabalho do Cade teria sido “bem feito” para limpar o mercado de companhias que pudessem atrapalhar o desenvolvimento do ramo no Brasil e também o de pavimentar o caminho para que novas empresas começassem a operar.

“De qualquer forma, havia dúvidas se o mercado não estava muito difícil para entrantes, principalmente uma companhia que não tinha conhecimento da área e, em especial, num momento de demanda ainda mais baixa do que o normal, por causa da pandemia de coronavírus”, disse essa fonte.

Em setembro, o Cade divulgou um estudo sobre o setor aéreo doméstico – que não menciona a chegada da Itapemirim no mercado – sobre o comportamento dos preços e o número de assentos vendidos por duas companhias aéreas nacionais, Gol e Azul, após suas fusões (Gol-Webjet, em 2012 e Azul-Trip em 2013).

O Conselho avaliou variáveis como as tarifas e os assentos vendidos de julho de 2010 a dezembro de 2019. “Os resultados indicaram uma redução de cerca de 8% na tarifa da Gol nas rotas em que as empresas incorporadoras operavam antes da fusão (sobreposição rotas) e um aumento de aproximadamente 38% nos assentos vendidos pela Gol nessas mesmas rotas após a transação”, informa o documento.

O relatório salientou ainda que, para os dados da Azul, não foram encontrados efeitos estatisticamente significativos na tarifa, mas um aumento de quase 27% para os assentos vendidos pela empresa em rotas sobrepostas. “Assim, é possível afirmar que o Cade cumpriu seu objetivo de proteger a concorrência em benefício dos consumidores.”

O texto pondera, entretanto, que se trataram de fusões pontuais em determinado período, e que esses resultados não necessariamente devem ser encontrados em todas as transações no setor de aviação civil.