Em muitas regiões produtoras  de cana-de-açúcar, foi-se o tempo em que usina de etanol e açúcar era sinônimo de transtornos para as cidades ao seu redor. Bastava a estrutura de uma unidade sucroalcooleira ficar pronta, e a produção esquentar as fornalhas, que começavam as queixas dos moradores. Ora o problema era a presença de centenas de trabalhadores braçais recrutados para cortar a cana, boias-frias migrantes que se instalavam ali para a colheita da safra, inchando as periferias dessas localidades. Ora era a sujeira provocada pela fumaça negra que cobria todo o entorno da usina, causada pela queima da palha da cana que antecede a colheita manual. Quase todo mundo torcia o nariz, e com razão: a desqualificação profissional não gera renda para as cidades e a fuligem está diretamente relacionada com doenças respiratórias. A boa notícia é que isso está ficando no passado. Atualmente, por conta do progresso nas relações de produção, em muitas cidades do circuito sucroalcooleiro a realidade é outra.

A mecanização que está tomando conta das lavouras vem provocando mudanças impensáveis até pouco tempo atrás, nos municípios produtores: céu limpo e uma classe social emergente, formada pelos ex-boiasfrias. Há alguns anos, as usinas vêm se antecipando à lei que determina o fim da queima da cana, prevista para entrar em vigor a partir de 2014, em áreas mecanizáveis, e a partir de 2017, nas lavouras não mecanizáveis, investindo pesadamente em máquinas que podem passar de R$ 1 milhão cada uma. Na temporada 2012/2013, na região Centro-Sul, que é responsável por quase 90% da safra nacional, 85% da colheita realizada foi mecanizada. No Brasil 401 usinas estão em operação. Entre elas, gigantes do setor, como as americanas Cargill, Bunge, São Martinho e ADM, e usinas nacionais de porte médio como a Itamarati, em Mato Grosso (leia mais na página xx).

Mas o investimento mais visível não está nas imensas colhedoras de até oito mil quilos de ferros e engrenagens. Para garantir mão de obra de qualidade e, claro, a colheita da safra, as empresas tiveram de investir em programas de capacitação profissional e em projetos sociais regionais. A nova onda é ser socialmente sustentável. Segundo Maria Luiza Barbosa, gerente de responsabilidade social corporativa da União da Indústria de Cana de Açúcar (Unica), atualmente quase todas as usinas brasileiras em operação possuem algum tipo de programa voltado à mão de obra. “Esse fato é muito importante para um setor que gera 1,2 milhão de empregos diretos, dos quais 500 mil somente na atividade rural”, afirma Maria Luiza. “Algumas empresas já saíram na frente para qualificar todo o processo produtivo.”

Entre as que se adiantaram está a ETH Bioenergia, empresa controlada pelo grupo baiano Odebrecht, comandado por Marcelo Odebrecht, dono de um faturamento de R$ 71 bilhões em 2011, com negócios que vão da construção pesada até infraestrutura, energia, petroquímica e extração de óleo e gás, entre outros. “Olhar para quem faz a empresa está no DNA da Odebrecht”, diz o executivo Luiz de Mendonça, presidente da ETH. Mendonça assumiu o cargo no início do ano passado, quando substituiu José Carlos Grubisich, hoje presidente da Eldorado Celulose, do grupo J&S. Até então, ele era vice-presidenteexecutivo da área de negócios internacionais da petroquímica Braskem, a menina dos olhos do conglomerado Odebrecht. “Não fazemos apenas cana, etanol, açúcar e energia elétrica, fazemos também empresários e líderes”, diz Mendonça.

Criada em 2007, a ETH opera nove usinas em Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Goiás e São Paulo, abastecidas por cana cultivada em 500 mil hectares. Na safra de 2011/2012, seu faturamento foi da ordem de R$ 1,8 bilhão. Para dar conta dessa engrenagem bioenergética são necessários mais de 15 mil funcionários. Vitório Bredariol, superintendente do polo das usinas paulistas, diz que desde a criação da ETH o projeto era ter somente unidades verdes. “A tecnologia está na base da nossa política para crescer”, afirma. “Sempre pensamos em operar usinas mecanizadas e socialmente sustentáveis.” E funcionou. Em meio a uma das maiores crises que o setor sucroenergético do País já enfrentou, com baixa produtividade dos canaviais, quebra de safra por três anos consecutivos e a falta de uma política estratégica de preços ao consumidor de biocombustível, a ETH vem acrescentando à sua área de cultivo 100 mil novos hectares a cada safra. Para os programas de capacitação, são destinados R$ 5 milhões por ano. “Quanto mais a ETH cresce, mais programas criamos”, diz Bredariol.

O polo paulista compreende duas unidades próximas à divisa com Mato Grosso do Sul e o Paraná: a usina Alcídia, no município de Teodoro Sampaio – a primeira a ser comprada, em 2007, por R$ 290 milhões –, e a Conquista do Pontal, em Mirante do Paranapanema, construída em 2009 ao custo de R$ 1 bilhão. A região conhecida como Pontal do Paranapanema, na qual estão as usinas, tem sido palco de muitos conflitos pela posse da terra, por causa da grande quantidade de áreas que não têm dono, ou não tinham e passaram a ter, por grilagem pura e simples. É nessas unidades que está o mais adiantado projeto de capacitação profissional que vem mudando a vida de muitos trabalhadores. A ETH possui 70 mil hectares no Pontal e emprega 3,4 mil funcionários.

Um deles é Rita de Cássia Marcelo, 32 anos. Todos os dias, ela veste o uniforme e toma assento em uma das colhedoras de cana da empresa. A ETH conta com quatro mil máquinas agrícolas, entre colhedoras, plantadoras e caminhões de transbordo. Para ser uma operadora de máquina na usina Alcídia, Rita de Cássia teve de tirar carteira de habilitação especial e participar de cursos de direção defensiva, primeiros socorros e combate a incêndio. Para quem empunhou um facão por dois anos, cortando cana de sol a sol, tornar-se uma operadora de máquina foi como ganhar na loteria. “Quando cortava cana, meu desejo era ter uma conta em banco e guardar algum dinheiro”, diz. “Hoje, tenho outros sonhos.” Entre as atuais ambições da operadora está a faculdade de enfermagem e a liderança de frente na ETH, cargo que  tem como responsabilidade principal zelar pelo bom andamento da colheita da cana. Nos próximos anos, Rita de Cássia quer equiparar-se a seu colega Reginaldo da Silva, 30 anos. Até 2009, antes de embarcar na onda da mecanização canavieira para crescer na vida, Silva trabalhava em uma olaria. “Fiz tijolos durante 12 anos”, afirma. Na ETH, ele começou como auxiliar de tratorista e atualmente é líder de frente. “Muita coisa mudou na minha vida”, diz Silva. “Tenho um carro, uma condição social melhor e posso dar aos meus filhos tudo o que eu não tive.”

As máquinas têm atraído até mesmo quem  nunca foi trabalhador braçal na cana. Cícera de Jesus Moura, 38 anos, deixou de lado o trabalho como vendedora em loja de confecção para dirigir uma delas. “Em 2011, ouvi no rádio que teria um curso para operador de máquina”, diz Cícera. “Corri pra fazer.” Segundo a operadora, o desejo de dirigir um desses equipamentos surgiu em uma viagem de automóvel. “Ao passar por uma área de cultivo, achei tudo lindo”, diz. Segundo a tratorista de transbordo, que assumiu o cargo em março do  ano passado, a mudança de trabalho também transformou a sua vida. “Tenho plano de saúde para mim, para minha filha e registro em carteira”, diz. “É tudo de bom.”

Trocando em miúdos, hoje a ETH sabe como ter a mão de obra de que precisa e a comunidade tem o desenvolvimento social. “Os programas de treinamento são a porta de entrada para que o trabalhador realize o seu projeto de vida”, diz Bredariol. Mas na empresa não se formam funcionários apenas para atuarem na base da produção. “Também há profissionais que vão muito além”, afirma Bredariol. “Basta que tenham oportunidade.” Daniel José Alves, filho de pernambucanos analfabetos que saíram do Nordeste para tentar a sorte no interior de São Paulo, é assistente-administrativo pleno da unidade Alcídia, posto que o coloca em uma posição de destaque na companhia. Alves já foi catador de latinhas, carpiu roça e colheu algodão. Quando era criança trabalhou em bar, vidraçaria, foi entregador de supermercado e frentista em posto de gasolina. Hoje formado em administração de empresas, Alves conclui neste ano a pós-graduação em gestão agroindustrial em bioenergia. “Consegui estudar por força de vontade e pelo apoio que a empresa me deu”, diz. A ETH pagou 50% dos estudos do ex-catador. Neste ano, se tudo der certo, ele espera chegar ao posto de analista ou supervisor. Na temporada 2011/2012 a ETH investiu R$ 540 mil em bolsas de estudo para graduação, pós-graduação e cursos de idiomas para 204 funcionários. Na safra 2012/2013, serão quase três mil funcionários beneficiados em todas as unidades da empresa.

A unidade de Teodoro Sampaio foi a primeira usina comprada pela Odebrecht, depois de fundar a ETH. Na época, apesar da capacidade para processar 1,3 milhão de toneladas de cana por safra, chegavam à usina apenas 30 mil toneladas. Atualmente, a capacidade de processamento está em 2,1 milhões de toneladas. Juntamente com a unidade de Mirante do Paranapanema, com capacidade para moer 4,5 milhões de toneladas, a ETH injeta na economia local, somente com salários pagos, R$ 60 milhões por ano.

A participação da empresa na vida da cidade vai além. Os arrendadores de terras também se beneficiaram com a chegada das usinas. O engenheiro agrônomo Roberto Gargione Junqueira, dono da fazenda Junqueira II , em Rosana, a 90 quilômetros de Teodoro Sampaio, assinou um dos primeiros contratos de arrendamento na região, passando para a ETH 750 hectares do total de 900 hectares da fazenda. “Foi um sos sego”, diz Junqueira. “Hoje é tudo  por conta da ETH, até mesmo conviver com a vizinhança terrível”, diz o pecuarista, referindo-se ao Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST), presente na região. A fazenda de Junqueira já sofreu duas invasões, uma em 1998 e outra em 2010.

Para o ex-prefeito de Teodoro Sampaio, José Ademir Infanti Gutierrez, que por dois mandatos comandou o município, o impacto da usina na região foi positivo. “A chegada da empresa melhorou a economia do município”, afirma Gutierrez. “A nossa receita se manteve em elevação ao longo dos últimos anos, graças à geração de empregos mais qualificados”, diz. O repasse do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) para a cidade quase dobrou, depois da ETH. Segundo a Secretaria da Fazenda do governo do Estado de São Paulo, o ICMS de Teodoro Sampaio em 2007 era de R$ 7,4 milhões. No ano passado, a cidade arrecadou R$ 13,1 milhões. Em Mirante do Paranapanema não foi diferente. De R$ 4,9 milhões, passou a R$ 8,5 milhões no mesmo período. Na usina Alcídia, a média salarial dos trabalhadores é de R$ 1.380, muito superior ao recebido por um cortador de cana, que, para fazer jus ao salário-base de R$ 545 na safra passada, teria de ceifar pelo menos três toneladas de cana. “Mudamos a cara da região”, afirma Mendonça. “Quem tinha uma venda, hoje tem um supermercado. Terrenos que custavam R$ 6 mil, há quatro anos, são vendidos a R$ 70 mil.”

Além dos voltados aos próprios funcionários, a ETH tem alguns programas voltadas para a comunidade. Entre eles, destacam-se o Gestão de Competência e Aprendizes, por onde já passaram mais de 90 mil jovens, e o Energia Social, implantado nos nove municípios que sediam suas usinas. O programa de gestão participativa reúne representantes do governo federal, lideranças das comunidades e a ETH. “Identificamos as carências de cada região e trabalhamos na elaboração de ações e investimentos”, diz Mendonça. “Em todas as iniciativas, a base é o treinamento operacional, técnico, comportamental e educacional. Uma coisa leva a outra.”

 

Educação acelerada

Para qualificar a mão de obra, usinas e instituições privadas se transformam em sala de aula Para formar a mão de obra de que precisam, as usinas de cana-de-açúcar c ontam c om o apoio de instituições de ensino técnico e até de universidades. O Centro Paula Souza, em Teodoro Sampaio, escola privada, foi o primeiro parceiro da ETH na r egião. Depois vieram outros, como o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), e as montadoras de máquinas agrícolas. “Também faltam profissionais qualificados para essas empresas, especialmente em mecânica e manutenção de máquinas”, diz Luiz de Mendonça, presidente da ETH. De acordo com Maycon Azevedo Geres, coordenador do curso de administração do Paula Souza, o instituto vai além da profissionalização e do desenvolvimento social. “Hoje, a cidade conta com um contingente de pessoas com currículo, que antigamente não existia”, diz Geres.

No ano passado, foi criada em Piracicaba, no interior paulista, a Universidade Canavieira, um portal para ensino à distância que oferece 60 cursos. Segundo o agrônomo Tadeu de Andrade, mantenedor da universidade, a demanda por trabalhadores especializados no setor vem aumentando nos últimos cinco anos. Andrade ocupou por uma década o cargo de diretor de pesquisa e desenvolvimento do Centro de Tecnologia Canavieira (CTC), t a m b é m d e Piracicaba, voltado para a pesquisa. “O objetivo agora é formar pelo menos 20 mil alunos nos próximos cinco anos”, diz.

Com a formação continuada, Andrade pode ajudar a resolver problemas como o de Cinthia Xavier Martim de Lima, gerente de recursos humanos da usina Itamarati, em Nova Olímpia, no sudoeste de Mato Grosso. A Itamarati, que está operando em sua segunda safra totalmente mecanizada, tem dificuldade em preencher cargos vagos na usina. “Também investimos em capacitação, mas a demanda está acima da capacidade de qualificação das pessoas”, diz Cinthia. A usina oferece cursos de aceleração da escolaridade, qualificação profissional e inclusão digital.

 

Tacada certeira

A busca por resultados na ETH faz parte de uma estratégia de longo prazo, na contramão da atual situação do setor sucroenergético do País

Em 2007, quando a ETH Bioenergia nasceu, o cenário no País já não era muito favorável ao setor bioenergético. Mesmo assim, o grupo Odebrecht apostou no segmento. A tacada foi certeira. Atualmente, as nove usinas da empresa processam 20 mi lhões de toneladas de canade-açúcar em terras arrendadas. Mas esse volume de cana representa metade da atual capacidade de moagem. O desafio, avalia Luiz de Mendonça, presidente da ETH, é vencer o fosso entre a capacidade instalada e o que é produzido no campo.

DINHEIRO RURAL – Que receita a ETH seguiu para driblar a crise do setor bioenergético?
Luiz de Mendonça –
A partir do momento em que a Odebrecht decidiu entrar no setor, o primeiro passo foi definir qual estratégia seguir. A possibilidade de crescimento não estava mais nas fronteiras tradicionais do interior paulista. Por isso, nos instalamos nos três Estados do Centro-Oeste, além de Teodoro Sampaio (SP), onde tudo começou. O segundo passo foi desenvolver a mão de obra local e arrendar terras.

DINHEIRO RURAL – Por quanto tempo as terras são arrendadas?
Mendonça –
Hoje, a duração média dos contratos é de 12 anos, mas estamos tentando elevar para 21 anos. Esse alongamento é um fator importante porque dá à empresa segurança para crescer.

DINHEIRO RURAL – Como a ETH vê o futuro do biocombustível de cana no País?
Mendonça –
A matriz energética brasileira pode ter altos e baixos, momentos complicados, como agora, em decorrência da rentabilidade sofrível do setor. Mas, com a frota brasileira de carros crescendo e a demanda por energia elétrica impulsionando o desenvolvimento industrial, a produção de etanol vai ser fundamental. O País não tem capacidade de importação total da gasolina de que precisa e o biocombustível é uma das constantes dessa equação a ser resolvida.

DINHEIRO RURAL – Então, por que o etanol não deslancha definitivamente como um segmento estratégico para a economia do País?
Mendonça –
Porque falta uma visão de longo prazo mais estável para o setor. A atividade rural precisa de tempo. Para um canavial chegar ao seu pleno desenvolvimento, são ne c e s sár ios c inco anos . Portanto, esse é um jogo que precisa de um longo planejamento. Mas já superamos a fase de mitos e fantasmas de que vamos destruira Amazônia inteira, que estamos plantando cana-deaçúcar no lugar de alimento. A grande fronteira de expansão da cana- deaçúcar é o pasto degradada cuja área a gente ocupa e recupera.

DINHEIRO RURAL – Quais os planos da ETH fora do Brasil?
Mendonça –
No ano passado, assumimos a implantação da Companhia de Bioenergia de Angola, chamada de projeto Biocom, uma joint venture entre a Odebrecht, a estatal angolana Sonangol e o grupo privado local Damer. A Biocom será a primeira usina de açúcar de Angola com capacidade para processar dois milhões de toneladas de cana a  partir deste ano. Além da África, também estamos analisando oportunidades em países como México, Colômbia e Peru.