Tocar a boiada com jeito, para que não se machuque na fazenda e também no trajeto até o frigorífico, é um dos trabalhos mais importantes na pecuária. Sem esse tipo de cuidado, as perdas de carne, por contusão, podem colocar por terra o árduo trabalho de cerca de três anos para se criar um bovino. O pecuarista Rodrigo Penna de Siqueira, diretor do grupo Otávio Lage, com sede em Goianésia (GO),
aprendeu essa lição na prática. No fim dos anos 2000, Siqueira passou por uma experiência desagradável, mas altamente educativa, que serve de exemplo para ilustrar O MAPA DA CARNE DE QUALIDADE ,
projeto da série Desafio 2050. Naquela época, seu avô Otávio Lage, um dos pecuaristas mais reconhecidos de Goiás, comprou o frigorífico Goiás Carne, que anos mais tarde seria adquirido pela JBS. Coube a Siqueira a tarefa de administrar a unidade e contabilizar os gargalos do negócio. Foi como diretor dessa unidade que o pecuarista sentiu no bolso o que é perder carne devido ao mau manejo do gado. “Contusão na carcaça de um animal abatido é como jogar dinheiro fora”, diz Siqueira. O grupo se desfez do frigorífico, mas o aprendizado do outro lado do balcão chamou a atenção para a necessidade de melhorias dentro da porteira. A experiência no Goiás Carne trouxe luz ao trabalho de campo do grupo Otávio Lage, espalhado por oito fazendas em Goiás e Tocantins, das quais saem todos os anos cerca de 
25 mil animais engordados em confinamento, entre criação própria e compra de terceiros. Hoje, o manejo é orientado de acordo com as normas de bem-estar animal, para que o gado criado no pasto vá para o curral sem estresse e para o período de engorda o mais tranquilamente possível. “Adequamos todas as nossas região do pescoço, onde é aplicada a vacina contra a febre aftosa, mas também apareciam muitos hematomas no traseiro do animal.” 

As observações de Siqueira encontram respaldo no trabalho de pesquisa do professor Mateus Paranhos, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), no campus de Jaboticabal. Paranhos é um dos criadores
do Grupo de Estudo em Etologia e Ecologia Animal (Etco) e o maior estudioso do País em comportamento animal. “O problema não é pequeno”, afirma Paranhos. Baseado no trabalho da equipe do professor e extrapolando o seu resultado para toda a cadeia bovina, metade dos cerca de 40 milhões de animais abatidos no País, anualmente, apresentaria pelo menos um hematoma na carcaça. Em cada lesão perde-se, em média, 500 gramas de carne. “Isso dá 20 milhões de animais com alguma lesão, o equivalente a 10% do rebanho criado no País”, diz Paranhos. A perda de carne em valores, tomando o preço
de US$ 4,8 mil por tonelada, no mercado internacional, ultrapassaria os US$ 300 milhões. Esse valor significa duas vezes a exportação dos primeiros quatro meses de 2014 para a Arábia Saudita, um dos mercados mais cobiçados pelo seu alto poder aquisitivo. Mas, de acordo com Paranhos, o prejuízo pode ser ainda maior se forem incluídas as perdas por abscessos decorrentes de reações a vacinas, não computadas na pesquisa.

A veterinária Fernanda Fragoso Moizes, realizou o trabalho de monitoramento de perda de carne por contusão em abates do frigorífico Argus, de São José dos Pinhais, no Paraná. Nas 11,2 mil carcaças avaliadas, mais da metade das lesões estava no quarto dianteiro dos animais. “Somadas as lesões na costela, no vazio e no traseiro, onde estão os cortes mais nobres, como contrafilé e picanha, o
estrago chegou a quase R$ 70 mil apenas nesse lote até o abate”, diz Fernanda. As perdas, porém, se alastram até o último elo da cadeia da carne. Como as áreas acometidas por lesões devem ser descartadas de acordo com a legislação brasileira, as contusões fazem com que os cortes fiquem menores e menos atrativas no varejo. “Por causa das contusões, as peças menores de carne não chamam a atenção do consumidor”, diz Fernanda. “Além disso, a qualidade da carne também é afetada.” Segundo a pesquisadora, a perda de sangue em virtude da lesão forma sobre os cortes de carne um substrato rico para o crescimento de bactérias, diminuindo o seu tempo de vida útil nos pontos de venda. 

No dia a dia da indústria frigorífica, os números apontados por Fernanda se multiplicam. Na JBS, da holding J&F, por exemplo, o monitoramento de perdas é realizado em todas as carcaças dos animais abatidos e os resultados são compilados pela equipe do departamento de Bem Estar Animal Corporativo. Em 2013, o prejuízo com as contusões foi estimado em cerca de R$ 8 milhões. De acordo com  verton Adriano Andrade, coordenador do departamento, em média, 11% dos animais abatidos em 2013 apresentaram ao menos uma contusão nos principais cortes de valor agregado, na região traseira das carcaças. “As perdas foram de picanha, alcatra, fraldinha e contrafilé”, diz Andrade. “O monitoramento diário é automaticamente passado a todos os responsáveis pela compra de gado e o transporte.” 

PROCESSOS De acordo com o professor Paranhos, identificar a causa das perdas pode ser um primeiro passo, embora não seja possível apontar para apenas um vilão nessa história. “Existem muitas variantes na cadeia da carne que levam à perda de valores”, diz Paranhos. “Além do manejo na fazenda de origem dos animais, estão a distância entre a propriedade e o frigorífico, o tipo de veículo utilizado no transporte dos bovinos e as condições das estradas.” Vacas que não criam, por exemplo, costumam ter índices de contusão maiores, uma vez que normalmente são animais de descarte e por isso os
cuidados na hora do embarque tendem a ser menores. “Reduzir o risco de contusões é uma tarefa de todos na pecuária”, afirma Paranhos.  

No Grupo Otávio Lage, o ponto de partida para as mudanças no manejo dos animais foi o confinamento da fazenda Vera Cruz, em Goianésia, GO. Para Fábio Maya, gerente de pecuária do grupo, algumas medidas simples ajudaram a reduzir os problemas de contusão. “Invertemos a posição das porteiras, que antes se abriam no contrafluxo dos animais e que causavam muitos acidentes”, afirma Maya. O tronco coletivo, ou brete, ganhou tábuas nas frestas das laterais para impedir que os bovinos visualizem os peões e possam se assustar. No embarque dos animais nos caminhões, seguindo a orientação de Renato dos Santos, médico veterinário e consultor da equipe de bem-estar animal da Beckhauser, de equipamentos para a pecuária, foram instaladas portas nos embarcadouros que se abrem pela lateral. Esse 
tipo de cuidado costuma ser negligenciado nas fazendas. Em geral, muitas delas utilizam a porta tipo “guilhotina” do caminhão para controlar o embarque do gado. “Quando uma porta guilhotina desce, normalmente ela bate em cima do lombo do animal, justamente na região onde ficam a picanha e o contrafilé”, afirma Santos. Segundo ele, com a porta tipo guilhotina, pelo menos duas lesões ocorrem em cada lote embarcado. 

Depois que estão nos caminhões, quando os cuidados com os animais ficam a cargo do frigorífico, o que tem feito a diferença na JBS são os treinamentos de funcionários e motoristas boiadeiros. Leonardo Vieira, coordenador de Logística de Originação da JBS, diz que a duração das viagens entre as fazendas e as unidades de abate é um gargalo. No País, as distâncias até o frigorífico, em geral, são longas e as estradas, precárias, ao contrário dos Estados Unidos, onde os confinamentos estão localizados a poucos quilômetros das unidades de abate. “Procuramos conscientizar os motoristas de que o transporte de uma carga viva requer cuidados especiais”, afirma Vieira. “Quanto maior a dificuldade na estrada, mais lentamente o caminho deve ser percorrido.”  

No fim do ano passado a JBS começou a implantar o projeto “Excelência em Bem-Estar Animal”. Com os treinamentos, os índices de perdas por contusão de animais vêm se reduzindo, principalmente nas
unidades de abate do norte de Mato Grosso e do Pará, Estados nos quais a incidência de problemas era maior. Desde fevereiro, uma das principais medidas vem sendo a instalação de câmeras de monitoramento para avaliação de manejo do gado nos frigoríficos. “Ao identificar as causas, podemos atuar para resolver os problemas, seja na fazenda, no transporte ou na indústria”, afirma Andrade.
Nas unidades em que o monitoramento desde a fazenda já funciona, as contusões nas carcaças caíram de 39% para 9,5% do gado abatido. “Melhorar ainda mais esse índice é um trabalho sem volta”, diz Andrade. “Com ele, ganha a indústria, mas também ganha o produtor.”