Quem acha que política e agricultura não têm nada em comum está enganado. As duas sempre andaram de mãos dadas. Seja por meio de programas de financiamento para a compra de maquinário, seja com a regulamentação de preços mínimos para os produtos agrícolas ou programas que exigem a conservação do meio ambiente, o governo federal sempre influencia na agricultura e na pecuária. E isso não acontece  somente no Brasil. Nos Estados Unidos, pátria do livre mercado e crítica contumaz do protecionismo e dos subsídios (dos outros) ao agronegócio, o assunto que fervilha nos debates políticos e nos encontros entre produtores, neste ano, é o Agricultural Act of 2014, ou Lei Agrícola de 2014, em bom português.

Trocando em miúdos, esse nome estranho significa a nova “Farm Bill”, uma robusta legislação assinada pelo presidente Barak Obama em fevereiro, que vai reger o campo americano com força total até 2018. “A maior mudança será a eliminação dos pagamentos diretos aos agricultores”, diz Ray Gaesser, presidente da American Soybean Association (ASA) – a associação americana de soja – e produtor em Corning, no Estado de Iowa, sobre o fim de um incentivo financeiro do governo americano, dado de acordo com a legislação anterior, principalmente para produtores de algodão. 

A nova lei é um calhamaço de mais de 900 páginas, que prevê um aporte de US$ 489 bilhões, durante a sua vigência. Desse total, cerca de US$ 41 bilhões serão destinados aos programas de seguro rural. Outros US$ 24 bilhões serão direcionados para programas de commodities. Há ainda recursos para programas de conservação, entre muitos outros. Basicamente, houve uma profunda reestruturação da lei agrícola, o que também inclui reajustes orçamentários para programas que já existiam. 

Toda a complexidade da nova lei vai exigir um bom tempo para adaptação. Os produtores ouvidos pela DINHEIRO RURAL ainda estão na expectativa para saber como ela vai funcionar, na prática. “Estive lendo e conversando com as pessoas sobre esse assunto, mas ainda não avancei com ideias claras”, diz Dan Ward, produtor de milho em Durham, na Carolina do Norte. Precavido, Ward se esquiva de emitir opiniões sobre a nova Farm Bill. “Ainda estou à espera de que algumas regras sejam escritas e adotadas”, diz Ward. “Por isso, não tenho conhecimento suficiente sobre os detalhes.” Outro produtor, Dale Portz, de Spragueville, no Estado de Iowa, também está na mesma situação. “Estamos esperando para participar de reuniões e aprender sobre a nova lei agrícola”, diz. Mesmo assim, ele se posiciona contra a legislação aprovada. “Tenho certeza de que essa lei vai ser pior do que a última, porque temos políticos em nosso governo que não sabem o que é a agricultura”, afirma. “Haverá mais regras, que vão tornar as coisas mais difíceis para a gente trabalhar e ganhar dinheiro.” 

Dono de uma fazenda de 303 hectares, onde cultiva milho e feijão, Portz já avalia como será o próximo orçamento, com o fim dos pagamentos diretos que recebia do governo americano. “Isso vai significar cerca de US$ 15 mil a menos na safra, mas vamos ficar bem sem essa ajuda financeira”, calcula ele. Sobre essa questão, ele acredita que, no longo prazo, o fim desse subsídio será positivo. “Nós gostamos de ter independência, muita gente acha que o governo deveria parar de interferir na agricultura e apenas nos deixar fazer o que sabemos como fazer”, afirma. “Tudo o que nós realmente precisamos é de uma proteção contra preços muito baixos ou desastres naturais.” 

Esse apelo de Portz, ao que parece, será atendido. A principal novidade da nova Farm Bill concerne aos programas de gestão de risco. O seguro rural foi ampliado e há novas modadidades de apólice. Segundo Gaesser, presidente da ASA, em média, cerca de 60% do custo do seguro agrícola será pago pelo Departamento de Agricultura dos Estados Unidos (USDA). Além disso, o agricultor pode escolher segurar  entre 70% e até 85% do seu rendimento. “Quanto maior a porcentagem de rendimento
que o agricultor optar por segurar, maior será o valor da apólice”, diz. Para Rick Tolman, CEO da National Corn Growers Association, a associação nacional dos produtores de milho, vale mencionar a criação da “Supplemental Coverage Option” (SCO), uma opção de cobertura complementar.

Com essa opção adicional, o agricultor evita possíveis perdas que não são cobertas pela franquia de apólice do seguro agrícola contratado. “Este novo programa pode ser muito atraente para agricultores que atuam em áreas de maior risco para a produção ou onde o seguro se tornou muito caro”, afirma Tolman. Outra vantagem, segundo ele, será o tratamento diferenciado para novos produtores. “A nova lei será de grande ajuda para os novos agricultores, por remover obstáculos administrativos e garantir que eles possam continuar na atividade”, afirma. De acordo com o USDA, a partir de 2015, os novatos da agricultura serão isentos de uma taxa de administração de US$ 300, por exemplo.

O TEMOR BRASILEIRO O impacto da Farm Bill não se limita ao mercado interno, ecoando mundo afora. Por aqui, especialistas e entidades temem que essa lei gere impactos negativos no mercado internacional. No caso do algodão, cultura que levou o Brasil a travar desde a década passada uma disputa na Organização Mundial do Comércio (OMC), contra os incentivos aos produtores americanos, a nova Farm Bill já é sinônimo de problema. “Agora, o agricultor americano vai receber um benefício ainda maior”, diz Gilson Pinesso, presidente da Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapa). Para ele, o pagamento do seguro agrícola é uma dessas vantagens adicionais. “A apólice é caríssima e será paga pelo governo dos Estados Unidos”, afirma. Pinesso avalia com preocupação uma eventual expansão da área plantada de algodão naquele país. A lógica é que uma maior produção provocará um recuo nos preços. Com preços em patamares mais baixos, enquanto o agricultor americano terá renda garantida com os programas de gestão de risco, seus colegas estrangeiros ficarão no prejuízo. “Quanto menor o preço do algodão no mercado internacional, maior será o impacto da Farm Bill”, afirma Pinesso. “A lei reduz a competitividade dos outros países produtores.” O diretor-geral da Agroicone, André Nassar, acredita que haverá uma adoção maciça aos seguros. Além  disso, ele vê na nova Farm Bill uma jogada política. “Os EUA eliminaram um programa que deixava o país desconfortável perante a OMC e criaram outro incentivo”, diz. “Com o seguro rural, é difícil provar que o programa distorce o mercado.” Toda essa conjuntura, segundo Pinesso, da Abrapa, poderá levar o Brasil a reabrir o painel na OMC para discutir a nova Farm Bill. “Se preciso, vamos expor os americanos ao julgamento internacional por práticas lesivas.”