A advogada Bruna Morato, representante de médicos que denunciam a rede Prevent Senior por fraudes na pandemia, acusou nesta terça-feira, 28, o governo de Jair Bolsonaro de firmar um “pacto” com a operadora de saúde para validar o tratamento da covid com medicamentos sem eficácia comprovada contra a doença – o chamado “kit covid”. O objetivo, segundo ela, era usar um estudo realizado em hospitais da rede para validar o discurso do Palácio do Planalto contrário ao isolamento social e ao lockdown, adotados como forma de evitar a propagação do vírus.

Em um depoimento de mais de seis horas à CPI da Covid, no Senado, Morato disse que a estratégia estava alinhada com interesses do Ministério da Economia e era intermediada por integrantes do chamado “gabinete paralelo”, formado por médicos defensores do chamado “tratamento precoce”, que prestou assessoria informal a Bolsonaro durante a pandemia. A advogada citou como parte do grupo a oncologista Nise Yamaguchi, o virologista Paolo Zanotto e o toxicologista Anthony Wong, que morreu de covid num hospital da rede, mas teve a informação omitida da declaração de óbito.

Bolsonaro chegou a divulgar em suas redes sociais informações sobre o suposto estudo com o “kit covid”.

O alinhamento da Prevent Senior com o governo, de acordo com Morato, começou no ano passado, após críticas do ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta à subnotificação de mortes de pacientes e ao atendimento da operadora a idosos. Ela relatou que o diretor executivo da empresa, Pedro Benedito Batista Júnior, tentou “se aproximar do Ministério da Saúde”, mas não conseguiu.

“Ele tentou se aproximar, então, de supostos assessores que estariam orientando o governo federal. Esses assessores estariam alinhados com os interesses do Ministério da Economia”, disse a advogada. Questionada por senadores sobre quais integrantes da pasta conversaram com a Prevent Senior, Morato disse que não tinha a informação. “Em nenhum momento eu recebi nenhuma informação que descrevesse nome ou participação dessas pessoas.”

A advogada disse que os relatos recebidos pelos médicos eram de “um interesse” da Economia para que o País não parasse e que, se houvesse lockdown, haveria uma grande perda econômica. “O que eles (médicos) me explicaram foi o seguinte: existe um interesse do Ministério da Economia para que o País não pare. Se nós entrarmos nesse sistema de lockdown, nós teríamos um abalo econômico muito grande. Então, existia um plano para que as pessoas pudessem sair às ruas sem medo”, disse Morato. “O que eles tinham que fazer era conceder esperança para que as pessoas saíssem às ruas, e essa esperança tinha um nome: hidroxicloroquina”, completou, citando um dos medicamentos do kit covid.

“A Prevent Senior entra pra corroborar essa possibilidade, ou seja, a possibilidade de as pessoas se exporem mais ao vírus cientes de que existe uma possível cura ou um possível tratamento”, afirmou Morato.

A Prevent Senior se tornou alvo da CPI após um grupo de 15 médicos que atuaram na operadora entregar um dossiê aos parlamentares em que acusam a rede de servir como uma espécie de “laboratório” do “kit covid”. Segundo a denúncia, pacientes não eram informados sobre o tratamento e atestados de óbitos eram fraudados para omitir que a morte foi causada pela doença. A empresa nega as acusações e se diz alvo de difamação.

Advogada diz que rede demitia médicos que não receitavam ‘kit covid’

No seu depoimento, Morato relatou aos senadores que médicos e enfermeiros da Prevent Senior chegaram a trabalhar infectados pelo novo coronavírus devido a “escassez do corpo clínico” da empresa. Ela apontou também que os profissionais de saúde da rede não tinham autonomia e a operadora demitia quem não receitava o “kit covid”. “Os médicos eram, sim, orientados à prescrição do kit. E esse kit vinha num pacote fechado e lacrado, não existia autonomia com relação até à retirada de itens desse kit”, afirmou. “Quando o médico queria tirar algum kit, ainda que ele riscasse na receita, o paciente o recebia completo.”

De acordo com a advogada, a insistência da rede com esses remédios ocorreu também como parte de uma estratégia para redução de custos. A representante dos médicos disse ter encaminhado à CPI mensagens de texto de integrantes da empresa que, segundo ela, “mostram que a Prevent Senior não tinha a quantidade de leitos necessários de UTI e que, por isso, orientava que fosse feito o tratamento precoce”. A média de idade dos associados da operadora, segundo a advogada, é de 68 anos.

“É muito mais barato para a operadora de saúde disponibilizar determinados medicamentos do que efetivamente fazer a internação daqueles pacientes”, afirmou. Segundo a advogada, em outras situações, após um período de internação de mais de 14 dias, pacientes eram submetidos a um protocolo de tratamento paliativo, que incluía a redução da oxigenação. “A expressão que eu ouvi ser muitas vezes utilizada é ‘óbito também é alta’”, disse Morato.

Senadores pedem que ANS e conselhos sejam investigados

Os relatos da advogada levaram os senadores a pedir que o Conselho Federal de Medicina (CFM), o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp) e a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), vinculada ao Ministério da Saúde, sejam investigados pela Procuradoria da República e pela Polícia Federal por suposta omissão no caso.

O pacto com o governo federal, segundo Morato, deu “segurança” à Prevent Senior de que a rede “não sofreria fiscalização do Ministério da Saúde ou de outros órgãos vinculados” à pasta.

“Nós estamos assistindo a um escândalo macabro com sinais tristes de eugenia. Algo que revela o quanto é triste esta página da história brasileira que nós estamos vivendo”, afirmou vice-presidente da CPI, senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), ao fim do depoimento.

Prevent Senior nega acusações; Planalto não se pronuncia

A rede Prevent Senior, acusada de fraudes e irregularidades por um grupo de médicos, afirmou em nota que repudia o que chamou de “acusações mentirosas levadas anonimamente à CPI da Covid e à imprensa”. Segundo a empresa, o depoimento da advogada Bruna Morato “confirma que se tratam de acusações infundadas, que têm como base mensagens truncadas ou editadas vazadas à imprensa e serão desmontadas ao longo das investigações”.

“A Prevent Senior estranha o fato de a advogada manter no anonimato os supostos médicos autores da acusação. A empresa ainda não teve acesso aos autos da CPI para fazer sua ampla defesa”, relatou a empresa.

A operadora também diz que Morato “tentou fechar um acordo para não levar o caso à CPI”, mas a empresa não concordou. Questionada ontem por senadores qual seria este acordo, Morato confirmou a tentativa, mas que não envolvia dinheiro.

Um dos pedidos, segundo ela, era de que a rede “assumisse publicamente” que o estudo com o “kit covid” não foi conclusivo. Também solicitou que o protocolo fosse tratado como “institucional” e que assumisse a responsabilidade diante de possíveis ações de indenização por dano material ou moral em virtude dos remédios.

A operadora de saúde registrou que já aplicou “cerca de 500 mil testes em que constatou o contágio de 56 mil pacientes”. Segundo a Prevent Senior, “7% redundaram em mortes”. “Todos os casos foram rigorosamente notificados. A Prevent Senior sempre respeitou a autonomia dos médicos, nunca demitindo profissionais por causa de suas convicções técnicas”, diz.

Também em nota, o Conselho Federal de Medicina disse “repudiar veementemente as acusações falaciosas proferidas por senadores”. Segundo o órgão de classe, ” qualquer denúncia contra médicos deverá ser apurada inicialmente pelo Conselho Regional de Medicina, no Estado em que ocorreu o atendimento”.

Procurado, o Ministério da Economia disse que não iria comentar as acusações feitas pela advogada.

O Palácio do Planalto e os médicos Nise Yamaguchi e Paulo Zanotto não se manifestaram.