Quando o “amigo da onça”, célebre personagem do caricaturista Péricles Maranhão despediu-se, definitivamente, das páginas da revista O Cruzeiro, no início dos anos 1970, para virar sinônimo de uma pessoa, digamos, pouco confiável, a zootecnista Márcia Gonçalves Rodrigues ainda era uma criança. Mal sabia ela que um dia trabalharia justamente como pesquisadora, na contramão do que a expressão popular sugere. Márcia está à frente do projeto “Cana Conviver – Protegendo a Biodiversidade”, uma parceria entre a União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), que coordena o projeto de recuperação de nascentes e matas ciliares, batizado de Corredor das Onças. O objetivo do Cana Conviver é fazer com que os trabalhadores do campo, especialmente aqueles envolvidos com a cultura da cana-de-açúcar, se tornem verdadeiros amigos da onça, sem as aspas. “Produtores e trabalhadores rurais são fundamentais para a conservação da biodiversidade”, afirma Márcia. “Pela proximidade com o habitat dos animais, eles podem ajudar a proteger essas comunidades.” De acordo com a pesquisadora, a ideia não é estreitar os laços entre as pessoas e o felino, mas tornar a convivência amistosa de modo a preservar a onça-parda, um animal que figura na lista das espécies ameaçadas de extinção em regiões que não fazem parte floresta Amazônica. Entre as zonas de risco estão o interior de São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Minas Gerais e Rio Grande do Sul.

O projeto Cana Conviver começou a surgir em 2008, após uma pesquisa conduzida pelo ICMBio mostrar que os canaviais paulistas estavam repletos de mamíferos, répteis e aves. Foi a senha para Márcia procurar a Unica, em busca de apoio para um trabalho ainda maior de proteção dos animais. A assinatura do projeto aconteceu em 2013, mesmo ano em que a economista Elizabeth Farina assumiu a presidência da entidade. De acordo com Elizabeth, o Cana Conviver é uma das bandeiras da Unica. “É gratificante estar envolvida num projeto que é um exemplo de cuidado ambiental”, afirma ela. “Queremos contribuir para retirar a onça da lista das espécies ameaçadas de extinção”.  Entre os animais que habitam os canaviais e o seu entorno, a onça-parda foi escolhida como protagonista do projeto por seu indiscutível apelo à preservação e também por ser considerada uma espécie-chave no ecossistema. “A onça está no topo da cadeia alimentar e por isso ajuda a controlar a população de outros animais”, diz Márcia. Um bom exemplo de bandos que precisam ser controlados com uma ajudinha das onças são os formados por capivaras, roedores vorazes que, segundo estimativas, provocam  uma perda anual de até 3% da produção nas lavouras de cana-de-açúcar, no Estado de São Paulo. Ou seja, na safra passada, em vez de 353,2 milhões de toneladas colhidas, poderiam ter sido obtidas 363,7 milhões, uma diferença de dez milhões de toneladas.


Cuidados especiais:o objetivo do projeto Cana Conviver é tornar a relação entre o felino e as pessoas mais amistosa, de modo a preservar a espécie, ameaçada de extinção

Não há estimativa sobre a população total de onças-pardas no território paulista, mas, acredita-se que  esteja crescendo, ou melhor dizendo, se recompondo aos poucos. O que embasa essa teoria é o aumento dos contatos visuais, que têm se tornado corriqueiros para os trabalhadores rurais, nas áreas de canaviais. Há, também, um crescimento considerável no número de “avistamentos” desses felinos nas áreas urbanas.  Dois fatores são apontados como os principais responsáveis por esse cenário. Um deles é a ampliação das áreas de florestas restauradas, muitas delas ao lado de canaviais, formando “corredores verdes” que favorecem a fauna, ao permitir seu deslocamento de forma segura. O segundo fator é o processo de mecanização no cultivo da cana-de-açúcar, com a eliminação das queimadas nos canaviais.

Na safra 2014/2015, por exemplo, a estimativa é de que 90% da colheita já tenha sido mecanizada, embora a lei preveja a eliminação total da utilização do fogo só em 2017.


União: a zootecnista Márcia Rodrigues destaca a importância da trabalhadores rurais na conservação da biodiversidade

Ao contrário do que se possa imaginar, as áreas de cultivo de cana funcionam como um abrigo para as onças. O monitoramento por satélite tem mostrado que os canaviais são parte do seu habitat, tornando-se um ótimo esconderijo para os seus filhotes. De sua sala em Brasília, em um dos escritórios do ICMBio, Márcia vem acompanhando os passos de duas fêmeas, pelos sinais enviados via satélite, através do GPS instalado em colares usados por esses animais. “As onças passam o dia todo dentro do canavial e só saem à noite para caçar”, diz Márcia. Assim, para manter a harmonia entre o homem e a onça, o Cana Conviver aposta na educação. Márcia aproveita as Semanas Internas de Prevenção de Acidentes do Trabalho (Sipats), eventos obrigatórios, segundo a legislação trabalhista, para ir até as usinas e capacitar funcionários. São palestras que orientam os trabalhadores dos canaviais sobre como proceder ao ver o animal.


Conscientização: para Fernanda Teixeira, da FMC, é preciso ensinar o setor a conviver de forma amistosa com o felino

Para viabilizar a disseminação da informação, o projeto conta com o apoio da FMC Agrícola, uma das líderes do mercado de defensivos para a cultura da cana. De acordo com Fernanda Teixeira, gerente de comunicação da multinacional americana, a empresa está empenhada na distribuição de cartilhas nas regiões sujeitas ao contato humano com a onça-parda. “É preciso ensinar o setor a conviver com esta nova realidade”, diz Fernanda. A parceria entre as instituições e a FMC também permitiu a construção de um centro de reabilitação de animais, inaugurado no município de Itapira (SP), no ano passado. Nele, há atualmente cinco onças-pardas se recuperando para voltarem à natureza. “Essas ações mostram que a agricultura contribui para a preservação do meio ambiente”, diz Fernanda.

De cara com a onça
Se você encontrar uma

Mantenha distância e permita que o animal siga seu caminho

Não entre em pânico se estiver em lugar seguro. Ou, então, procure se afastar lentamente. A reação do animal é a fuga e não o ataque

Ao encontrar uma ninhada, não toque ou retire os filhotes do ninho. Notifique o encarregado de campo para que o corte naquele talhão seja suspenso e a área isolada. Em geral, a mãe resgata a ninhada durante a noite

Fera de olhos verdes

Nome científico: Puma concolor

Nomes utilizados no Brasil: onça-parda, jaguaruna, mossoroca, onça-boiadeira, suçuarana, onça-vermelha, leão-baio, leão-da-montanha e leãozinho-de-cara-suja

Porte e aparência: até 155 centímetros de comprimento (sem a cauda) e cerca de 70 quilos de peso. É capaz de pular até 5,5 metros de altura

Alimentação: cobras, aves, veados, pacas, cutias, capivaras e diversos pequenos roedores

Hábitos: é solitária, como pico de atividade à noite

Tempo de vida: entre sete e 12 anos na natureza, mas pode viver até 15 anos

Ninhada: até três filhotes

Tempo de gestação: 80 a 100 dias

Intervalo entre as gestações:dois anos

Curiosidade: a onça-parda nasce com manchas escuras e olhos azuis. A partir do quinto mês, os filhotes perdem as manchas e se tornam pardos, com os olhos verdes