Em meio à pandemia de covid, o Brasil completou cinco anos do anúncio de outra emergência em saúde pública: o surto de microcefalia causado pelo zika vírus. Embora os casos da má-formação venham diminuindo desde 2016, as 3 mil crianças que nasceram com o problema no País continuam lidando com sequelas graves da síndrome – em alguns casos, agravadas com a crise do coronavírus.

Alessandro, Laura, Matheus e Pérola fazem parte do primeiro grupo de crianças nascidas com a síndrome congênita do zika no Brasil, entre 2015 e 2016. Hoje com 5 anos, tiveram algum nível de regressão em seu desenvolvimento após suspenderem total ou parcialmente o tratamento. São acompanhadas pelo Estadão desde o primeiro ano de vida. Quando completaram 12 meses, uma reportagem especial mostrou o descaso governamental na oferta de terapias e as dificuldades enfrentadas pelas famílias. Quatro anos depois, o cenário não é muito diferente.

Segundo o último boletim epidemiológico do Ministério da Saúde sobre o tema, publicado em fevereiro, das 2.953 crianças vivas com síndrome congênita associada ao zika, 56,4% estão recebendo atendimento especializado. E o problema da falta de acesso às terapias pode ser ainda maior. Isso porque não se sabe ao certo o número real de crianças vivendo com as sequelas da SCZ no País por causa do alto número de casos suspeitos da síndrome que ainda não tiveram investigação concluída.

De 2015 a 2020, foram notificadas 19.622 suspeitas do quadro, das quais 3.577 foram confirmadas e 2.890 estão sob investigação, mais de 500 referentes a nascimentos ocorridos nos anos de 2015 e 2016. Isso quer dizer que o País pode ter centenas ou milhares de crianças com alguma sequela do vírus sem nem constar nos registros oficiais – e provavelmente sem contar com assistência profissional.

Considerando apenas o ano de 2020, 1.007 novos casos foram notificados, dos quais 35 (3,5%) foram confirmados e 597 (59,3%) permanecem em investigação. O próprio ministério ressalta em seu boletim de fevereiro que os casos sem resolução dificultam a elaboração de políticas públicas e destaca que, embora o período crítico do surto tenha terminado, o País vem registrando novos casos da síndrome. “O alto porcentual de casos em investigação pode comprometer o conhecimento do verdadeiro cenário epidemiológico da SCZ no Brasil. A notificação dos casos suspeitos só faz sentido se devidamente investigados, de modo a produzir informação confiável e guiar o planejamento das ações para enfrentamento da doença”, destaca o documento.

Também chama a atenção a alta mortalidade entre essas crianças. Dos 3.423 nascidos vivos entre 2015 e 2020 com o diagnóstico confirmado da síndrome, 493 já morreram, o equivalente a 14,4%. Se calculada a taxa de mortes por mil nascidos vivos até 5 anos, o índice das crianças com a síndrome é de 144, dez vezes maior do que esse índice na população geral da mesma faixa etária (13,9).

Para Germana Soares, presidente da União Mães de Anjos (UMA), associação de Pernambuco que representa famílias de crianças com a síndrome do Estado, a pandemia só agravou as dificuldades vividas pelas crianças e suas famílias. “Guilherme, sem a fisioterapia, foi ficando com o pé atrofiadinho e tive de passar com ele numa consulta de urgência no ortopedista”, explica ela, referindo-se ao filho, também de 5 anos.

A médica Mariangela Rocha, coordenadora da infectologia pediátrica do Hospital Universitário Oswaldo Cruz (HUOC), no Recife, referência no Estado para acompanhamento das crianças com a má-formação, conta que, durante a pandemia, a unidade se tornou referência também para atendimento de covid-19, o que dificultou a manutenção do atendimento multidisciplinar. “Ficamos praticamente com todos os leitos dedicados à covid”, conta ela, que também teve de se distanciar do trabalho presencial por ser do grupo de risco.

A médica diz que os terapeutas do hospital chegaram a gravar vídeos com instruções para os familiares fazerem estimulação com as crianças em casa, mas que, por mais dedicados que sejam os pais, dificilmente os esforços substituirão um atendimento profissional. A mãe de Guilherme conta que, mesmo antes da pandemia, os centros de reabilitação que atendiam as crianças foram reduzindo as vagas. “E alguns centros mais distantes da capital têm dificuldade para contratar profissional porque ninguém quer estar em um local mais pobre e distante para ganhar R$ 1,4 mil. São vários obstáculos”, diz.

Para Monique Oliveira, doutora pela Faculdade de Saúde Pública da USP que, em sua tese, pesquisou a relação da ciência com as famílias no zika vírus, “o esforço da comunidade científica foi fechar a relação de causalidade entre o zika e a microcefalia”. “Mas essa era a pergunta mais relevante? Não vemos o mesmo esforço da comunidade científica para respostas como o modelo de intervenção que precisa ser pensado para essas crianças. Então fica uma frustração das famílias.”

Governo federal

Questionado, o Ministério da Saúde informou que, atualmente, há 506 serviços de reabilitação que recebem orçamento de custeio do governo federal. De acordo com a pasta, muitos desses serviços “passaram a utilizar estratégias alternativas por causa da pandemia, como o teleatendimento”. Além disso, ressaltou que foram investidos, desde 2015, mais de R$ 223 milhões em pesquisas relacionadas aos temas zika e microcefalia.

Alessandro

’11 KG E DIFICULDADE PARA PODER COMER

O pesadelo da família de Alessandro começou com a dificuldade dele em se alimentar pela boca após parar com as sessões de fonoaudiologia. Com o atendimento semanal suspenso por causa da pandemia, o garoto de Goiana, cidade a 70 km do Recife, passou a ter dificuldades para deglutir e começou a perder peso. Chegou a pesar, no início de 2021, 11 quilos – o esperado para crianças na faixa dos 2 anos.

Segundo a mãe, a dona de casa Rayane Gomes Mendes, de 24 anos, por alguns meses o menino teve de ser nutrido por sonda – primeiro pela via nasogástrica, aquela que é colocada do nariz até o estômago. “Era fevereiro de 2021 e os hospitais todos lotados por causa da covid, eu fiquei muito nervosa, tremia, não conseguia dormir quando ele estava nessa situação”, diz ela. A angústia de ver o filho internado com quadro de desidratação fez a jovem desenvolver depressão, doença que vem agora tentando controlar com medicamentos e terapia.

Rayane espera agora que o menino consiga retomar integralmente as terapias que fazia em três hospitais.

Laura

‘ELA NÃO SENTA, NÃO USA A MÃO’

Sem fisioterapia, a rigidez muscular, típica das crianças com sequelas neurológicas, se intensificou. “Ela teve de entrar até no Rivotril por causa da musculatura rígida. A fisioterapia era boa para relaxar os músculos, para poder fazer cocô. Na fono, fazia exercícios para conseguir deglutir a saliva, para não broncoaspirar. Alimento, ela não consegue comer, usa sonda. Com a suspensão, não tem mais evolução. Não senta, não pega nada com as mãos”, diz a dona de casa Jaqueline Oliveira, de 30 anos, mãe de Laura.

Como se não bastassem os prejuízos em sua qualidade de vida, a menina de 5 anos (gêmea de Lucas, que nasceu sem a má-formação) foi afetada até pela crise econômica na pandemia. Seu pai perdeu o emprego após a empresa onde trabalhava fechar – o dono morreu de covid.

Sem a principal renda da casa e com Laura e mais três crianças para sustentar, Jaqueline e o marido decidiram, em abril, voltar para Pernambuco, onde nasceram e têm familiares. Foram viver em Camutanga, município de 8 mil habitantes distante pouco mais de 100 quilômetros do Recife. Ao procurar assistência especializada na cidade, Jaqueline se decepcionou. Segundo ela, os médicos “nem sabiam lidar” com uma criança com microcefalia.

Matheus

TRATAMENTO PAGO POR VIA JUDICIAL

Matheus é uma das poucas crianças com a síndrome congênita do zika que conseguiu manter as terapias. Como é beneficiário de um bom plano de saúde oferecido pela empresa da mãe, ele pôde continuar com sessões domiciliares de fisioterapia, fonoaudiologia e terapia ocupacional, além de hidroterapia e psicologia fora de casa. Há três anos, também frequenta uma clínica privada que oferece therasuit, terapia inovadora que usa equipamentos, vestimentas e órteses para estimular de diferentes maneiras as crianças com problema motor.

A família entrou na Justiça para obrigar o convênio a arcar com os custos da assistência. “Ganhamos. O tratamento custa de R$ 9 mil a R$ 12 mil por mês”, conta a mãe, a bancária Isabel Cristina Gomes de Albuquerque, de 43 anos.

Pérola

‘SE EU MORRER, QUEM VAI CUIDAR?’

Durante quase um ano, Pérola ficou sem frequentar as terapias. No meio de 2021, Marcione Gomes da Rocha, de 33 anos, conseguiu que a filha retomasse o tratamento duas vezes por semana em unidades de saúde da cidade. A vendedora conta que ficou receosa em sair do isolamento por medo de se contaminar e deixar desamparados os filhos, outro dilema das mães de menores com microcefalia.

Se não vão às terapias, veem os filhos regredirem no desenvolvimento. Se decidem ir, ficam com o medo de uma contaminação.”Se eu morrer, quem vai cuidar dessas crianças?”, questiona.

Mesmo com a retomada das terapias há cerca de dois meses, os danos da interrupção da assistência ainda são evidentes para a mãe. “Ela pode ter de fazer cirurgia”, conta.

ESTA REPORTAGEM FOI FEITA COM O APOIO DO DART CENTER FOR JOURNALISM & TRAUMA, UM PROJETO DA ESCOLA DE JORNALISMO DA UNIVERSIDADE COLUMBIA (EUA)

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.