O ano de 1994 foi marcado por três grandes acontecimentos: o País chorou com a morte do piloto Ayrton Senna no Grande Prêmio de Ímola, na Itália, foi tetracampeão mundial de futebol, e viu, sem muito
entusiasmo e até mesmo uma certa descrença a princípio, mais um plano do governo federal para domar uma economia fragilizada por uma inflação galopante e aparentemente incontrolável. Colocado em prática no dia 1º de julho daquele ano, no governo do presidente Itamar Franco, o Plano Real completa 20 safras agrícolas neste ano. “A bagunça econômica mascarava os resultados do setor rural porque comia o custo de investimentos, sobretudo os de longo prazo”, diz o ex-ministro da Agricultura Roberto Rodrigues. “Hoje, com a estabilização, a história é outra.” 

O Real mudou a história do Brasil ao acabar com a praga da inflação. Só para se ter uma ideia do desastre, em 1990, o aumento de preços chegou as 4.853%. Um ano antes do anúncio, na fase preparatória
do Plano Real, bateu nos 2.477%. Era quase impossível pensar em um crescimento sustentável, pensar em investimento de longo prazo o em modernização tecnológica.

Mas isso é história. Com o Real, que inaugurou uma era de estabilidade monetária, o Brasil, e com ele o agronegócio, pôde competir em melhores condições na economia globalizada. Recordes em cima de recordes de produção no campo se sucedem a cada ano. 

Há duas décadas, quando as lavouras brasileiras produziam 80 milhões de toneladas de grãos, era quase impossível pensar que um dia seriam 193 milhões. “Vamos produzir 200 milhões daqui a pouco,
e 300 milhões mais adiante, com certeza”, diz Rodrigues. Para Decio Zylbersztajn, economista e professor da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA/USP), o Plano Real deu sustentação para a produção agrícola crescer, gerar resultados sustentáveis nas exportações e suprir o mercado interno. “Foi o Real que fez os municípios das áreas de produção agrícola no País melhorarem o seu Índice de Desenvolvimento Humano (IDH)”, diz Zylbersztajn. Não é difícil entender o ceticismo que cercou a chegada do real. Antes dele, o País já havia passado por sete moedas, cada uma rapidamente corroídas pelo dragão da inflação. “Eu mesmo nem acreditava que o Plano Real daria tão certo”, afirma Maurílio Biagi Filho, produtor rural, presidente do grupo Maubisa, de Ribeirão Preto  (SP), e que por vários anos também foi presidente da Agrishow, a maior exposição de máquinas agrícolas da América do Sul. “Mas o plano vingou e foi bom para o País”, afirma Biagi. De acordo com  Arlindo de Azevedo Moura, presidente da Vanguarda Agro, que produz soja, milho e algodão em mais de 250 mil hectares espalhados em cinco Estados, o maior trunfo do Plano Real foi a capacidade que deu aos produtores de planejar sua atividade. “Com a desvalorização diária que havia, era impossível fazer isso”, diz Moura. 

MÁSCARA INFLACIONÁRIA

O consultor José Luiz Tejon, vice-presidente de comunicação do Conselho Científico da Agricultura Sustentável (CCAS), afirma que esse foi grande impacto provocado pelo Real. A partir dele, os produtos do campo passaram a ter preços definidos, sem a máscara inflacionária. “Esse aspecto pode parecer meio tolo, mas com isso, o produtor passou a ter controle de custo e rentabilidade”, diz Tejon. “Com o Real, o agronegócio passou a ter a possibilidade de gestão”. 

Na arte de cultivar, o Brasil anterior ao Plano Real já apresentava bons índices de produção. O que não havia era volume, por falta de segurança. “Já tínhamos plantas de soja transgênica que ajudaram muito na produtividade das lavouras”, diz Moura. Por isso, de 20 anos para cá, com bons ventos soprando a favor, os resultados da oleaginosa impressionam. O cultivo de soja, estimado nesta safra em 86 milhões de toneladas, cresceu 232%, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), sobre a anterior. “O desempenho mundial não chegou nem à metade do que conseguimos no Brasil”, diz Moura. 

A produção de milho, cereal que vem se firmando definitivamente como a segunda maior commodity do País, cresceu 108%. Hoje, são 78 milhões de toneladas colhidas. O salto se deu por causa de seu cultivo na entressafra da soja. Se contar apenas o chamado milho de segunda safra, o salto foi de incríveis 1.223%. Mas, em termos de produtividade, é a cultura do algodão que vem fazendo bonito desde o nascimento do Real. Durante esse tempo, a produtividade da fibra saiu de 1,2 tonelada para 3,8 toneladas, por hectare, nesta safra. O crescimento foi de 208%, ante 89% na produtividade do milho e de 29% na soja. No arroz, o desempenho também foi significativo, de 94%, passando de 2,6 toneladas, por hectare, para 4,9  toneladas. Na última safra foram colhidos 12 milhões de toneladas do cereal. 

MAIS PROTEÍNA – O crescimento da produção de arroz e demais produtos da cesta básica, como o feijão e farinhas, mostrou que a população estava mudando o padrão de alimentação.  Porém, ela queria consumir mais, sobretudo carnes de boi e frango. “Um dos índices que medem a melhoria da dieta de uma população é justamente a quantidade de proteína em relação aos carboidratos”, diz Alcides de Moura Torres Junior, diretor presidente da Scot Consultoria. “O Plano Real deu essa possibilidade e as pessoas passaram a ter acesso a uma dieta mais rica”. 

Em duas décadas, a produção de carne bovina saltou de 3,3 milhões de toneladas para 8,2 milhões, destinadas apenas ao mercado interno, um crescimento de 145%. De acordo com Pedro Gustavo 
Novis, presidente da Associação dos Criadores de Nelore do Brasil (ACNB), a estabilização da moeda levou a maiores investimentos também nesse setor. “O plano econômico permitiu que o produtor tivesse
uma melhor concepção do que é custo e o do que é lucro”, diz Novis. “Com dinheiro no bolso, o pecuarista passou a investir na produção.” Para o presidente do Conselho Nacional da Pecuária de Corte
(CNPC), Tirso de Salles Meirelles, os investimentos maiores na pecuária foram na infraestrutura de criação, o que permitiu produzir mais. “Hoje, temos pastos melhores e sistemas mais sofisticados de produção de carne, entre eles o confinamento.”

Na avicultura, o arranque também foi fantástico. Segundo o IBGE, o abate de frango, que se transformou num dos “símbolos” do Plano Real, saiu de 2,4 milhões de toneladas para 12,4 milhões,
uma alta de 422%. “No início do Plano, o próprio frango se tornou uma moeda”, diz Carlos Sperotto, presidente da Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul). “Foi certamente
o setor que sustentou essa passagem da moeda e segurou as pontas do mercado.” Até a carne suína, a que menos cresceu, impressiona: saiu de 980 mil toneladas para 3,1 milhões, alta de 217% em 20 anos. 

CANA-DE-AÇÚCAR – Das cadeias produtivas do agronegócio pós Plano Real, a que menos tem a comemorar é a sucroalcooleira, embora a atual produção de 653 milhões de toneladas de cana-de-açúcar seja um recorde no setor. Em relação a 1994/1995, quando foram colhidos 241 milhões de toneladas de cana, o crescimento foi de 171%, segundo a União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica). Para o consultor Arnaldo Luiz Corrêa, gestor de risco para o mercado e diretor da Archer Consulting, o setor sucroalcooleiro tem sofrido por causa da volta do controle do governo sobre os preços dos combustíveis. 
“No futuro, podemos deixar de ser produtor de um combustível sustentável para sermos apenas um fornecedor de aditivo à gasolina”, diz Corrêa. “Esse controle pode desvirtuar, indiretamente, todo o cenário construído pelo Real.” momento. Segundo os consultores ouvidos pela DINHEIRO RURAL, faltam políticas mais claras para a economia e, de quebra, para o agronegócio.  “Estamos em um momento de aumento da inflação, fruto do desbalanceamento fiscal”, diz Zylbersztajn. Para Meirelles, do CNPC, o Brasil não pode se dar ao luxo de deixar de produzir alimentos e energia. “Nossa sorte é que temos a vantagem de sermos naturalmente produtores de alimentos”, diz Meirelles. “Temos recursos naturais de sobra, só precisamos ser estratégicos.”