Cientistas brasileiros tentam desenvolver uma vacina contra a covid-19 capaz de tirar o País da dependência de importações. Nesta semana, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) autorizou o início dos ensaios clínicos da Butanvac, candidato a imunizante testado pelo Instituto Butantan. Mas os pesquisadores por trás desses projetos têm outro – e não menos importante – problema a resolver. Como testar novas vacinas se boa parte da população já está imunizada ou na beira da fila para conseguir sua dose?

O avanço da vacinação contra a covid-19 impõe mudanças no desenho de testes para as vacinas brasileiras. Diferentemente do cenário de um ano atrás, agora não é mais possível – nem ético – manter grupos de voluntários que receberão apenas placebo. E, mesmo que os estudos comecem com jovens não imunizados, cedo ou tarde eles serão chamados pelo plano nacional de vacinação. E acabariam largando as pesquisas.

Por isso, no Brasil, as pesquisas brasileiras de vacinas preveem medir a eficácia em comparação com imunizantes que já existem no mercado, o que dispensa a necessidade de ter pessoas não vacinadas nas pesquisas. Esses ensaios são chamados de estudos de não inferioridade. Basicamente, o que se mede é se a nova vacina tem desempenho semelhante ou não inferior em relação ao imunizante com a qual ela vai ser comparada.

Como as novas vacinas brasileiras serão testadas?

Vacinas brasileiras mais adiantadas, como a Butanvac, produzida pelo Butantan, serão testadas na comparação com outra vacina que já está no mercado. Dessa forma, todos os voluntários que participarão do estudo receberão vacinas – uma parte será vacinado com um imunizante que já existe (como a Coronavac) e a outra parte com a nova vacina que se quer testar. No caso da Butanvac, a primeira fase do ensaio clínico ainda usará placebo nos voluntários, mas nas fases posteriores, todos receberão vacina (ou a Coronavac ou a Butanvac).

Como testar as vacinas sem grupo placebo?

Uma das dificuldades ao se fazer estudos comparativos, neste momento, é conseguir as doses para o grupo controle. Se todos os voluntários vão receber vacinas, será preciso então ter doses disponíveis dos imunizantes que já existem no mercado para fazer os testes. Ocorre que as doses hoje aplicadas no Brasil são exclusivas para o Plano Nacional de Imunização (PNI). Não é possível, simplesmente, deslocar doses do PNI para os ensaios clínicos. Os cientistas já estão esbarrando nessa dificuldade antes mesmo do início dos testes em humanos.

Uma das vacinas mais adiantadas, a Spintec, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), deve ser testada de modo comparativo a outro imunizante que já existe. Os ensaios em humanos vão começar só no ano que vem, mas a Anvisa sugeriu que experimentos com animais já fossem desenvolvidos de modo comparativo – ou seja, que os cientistas usassem doses de vacinas disponíveis no mercado nos animais, para comparar com a Spintec.

“Hoje não temos vacina para fazer isso”, diz o virologista Flávio da Fonseca, responsável pelos estudos com a Spintec. Os pesquisadores acreditam que, no ano que vem, o cenário mude com a vacinação completa da população e que os imunizantes fiquem mais disponíveis para as pesquisas. No caso da Butanvac, esse problema tem solução mais fácil, já que a Coronavac é produzida no próprio Instituto Butantan.

Como verificar se as novas vacina são eficazes?

Os estudos comparativos podem medir o nível de resposta imune que a nova vacina gera, na comparação com a resposta imune provocada pelo imunizante que já existe no mercado. Exames laboratoriais seriam capazes, por exemplo, de medir a quantidade de anticorpos produzidos por uma e outra e fazer a comparação.

Só essa medida, no entanto, pode ser insuficiente para atestar a eficácia. Isso porque ainda não existe um consenso científico sobre qual anticorpo garante, necessariamente, a proteção da pessoa vacinada. A Anvisa explica que ainda é necessário que seja definido, internacionalmente, o que se chama de “correlato de proteção” para a covid-19.

Mas o que é esse correlato de proteção?

“Correlato de proteção envolve a definição de um anticorpo ‘padrão-ouro’ obtido pelas vacinas que são comprovadamente eficazes contra covid 19”, explica a Anvisa. As novas vacinas seriam, então, observadas quanto a possibilidade de gerar este mesmo anticorpo. Mas esse debate sobre correlato de proteção “é uma discussão internacional e sobre a qual ainda não existe consenso”, afirma a agência.

Segundo a Anvisa, “mesmo fazendo um estudo comparativo e estabelecendo uma proposta de comparação entre vacinas, os estudos de fase 3 seriam necessários para verificar o desempenho na prevenção de casos graves e sintomáticos de uma vacina versus outra”.

E quais são as perspectivas de tempo de testes das vacinas?

Mantida a exigência de fase 3, é provável que os testes com as vacinas brasileiras demorem mais do que os estudos realizados até agora. Em um estudo comparativo, em que ambos os grupos tomam vacinas, aguardar casos de infecções ou hospitalizações pode demorar muito tempo ou exigir número grande de participantes. Os testes com as vacinas contra a covid-19 que conhecemos hoje andaram rapidamente, entre outros motivos, porque havia alta circulação do vírus e boa parte da população estava desprotegida.

O Butantan estima 17 semanas para concluir os testes da Butanvac, a partir do começo dos ensaios clínicos. Já para Spintec, da UFMG, os pesquisadores preveem conclusão dos estudos só na metade de 2022. Sobre a Versasume, desenvolvida pela USP Ribeirão Preto, a expectativa também é de concluir essa fase da pesquisa só em 2022.