A imagem de alimentos descartados em lixões, feiras e centros de distribuição, como a foto ao lado, é uma cena comum nos dias atuais. E acontece por todo o País, de metrópoles como São Paulo e Rio de Janeiro às pequenas cidades do interior. Pesquisas mostram que, anualmente, 127 milhões de toneladas de alimentos são desperdiçados nos países da América Latina e Caribe, segundo estimativas da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO/ONU). Trata-se de uma média de 223 quilos por cada habitante da região. “É uma triste contradição que precisa ser combatida urgentemente”, diz Alan Bojanic, representante da FAO no Brasil. Esse problema não é exclusivo do País. A cada ano, 1,3 bilhão de toneladas de alimentos são jogadas no lixo em todo o mundo, levando a um prejuízo da ordem de US$ 750 bilhões para a economia global. No fim do ano passado, em um seminário promovido pela FAO, o Brasil se comprometeu retomar o tema no Comitê Técnico da Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional (Caisan), órgão que reúne 11 ministérios, além de secretarias do governo. “Vamos reunir os especialistas brasileiros para começar a pensar em uma proposta e apoiar o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística na quantificação das perdas e desperdícios de alimentos no País”, disse Katlheen Sousa Oliveira Machado, coordenadora federal de Equipamentos Públicos e Segurança Alimentar e Nutricional do Ministério do Desenvolvimento Social. “Precisamos saber o quanto é desperdiçado.”

Pela estrada: o transporte entre uma fazenda e um armazém de terceiros resulta em uma perda de 0,5% do volume de grãos (Crédito:Divulgação)

Embora não haja dados oficiais reunidos em um só lugar sobre desperdício, é possível analisar alguns cenários a partir de dados de safra e de estimativas. A perda de alimentos ocorre em toda a cadeia produtiva do segmento de produção de grãos e fibras, e também no segmento de Frutas, Verduras e Legumes, chamado de FLV. Na linha da produção, o que mais atinge o agricultor são as perdas pós-colheita (PPC). Marcos da Rosa, produtor de grãos em Mato Grosso e que presidiu até o mês passado a Associação Brasileira de Produtores de Soja (Aprosoja Brasil), diz que a diminuição dessa perda pode ser a diferença entre ter lucro ou não a cada safra. “Em Mato Grosso, o produtor rural já convive com margens muito apertadas no cultivo da lavoura”, afirma Rosa. “As perdas podem levar o agricultor a não ter rentabilidade.”

Do total colhido na safra 2016/2017, soja e milho responderam por 211,7 milhões de toneladas. As perdas com os dois grãos, os mais importantes na pauta de exportação, são estimadas em 2,7 milhões de toneladas. Levando em conta os preços atuais, os prejuízos somam R$ 2,6 bilhões. Os gargalos estão por toda parte. Das más condições de caminhões às estradas, da falta de treinamento dos operadores de colhedoras aos secadores e armazéns mal localizados ou ineficientes. De acordo com Thiago Péra, coordenador técnico do grupo de Pesquisa e Extensão em Logística Agroindustrial da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-Log), a armazenagem é o principal fator de perda da produção. Ela pode chegar a 1% da produção, o que equivaleria na safra atual a 2,3 milhões de toneladas de grãos. Com os preços atuais da soja, a perda chega a R$ 4 por tonelada-mês. “Quando o produtor armazena os grãos, ele sabe que irá ter prejuízo”, diz Péra. “Usamos como referência uma média de desperdício de 0,15% do volume a cada quinze dias.” Isso, quando o produtor consegue estocar a safra em silos e armazéns.

Paulo Humberto Alves Maciel, produtor de soja e milho nos municípios de Rio Verde e Montividiu, ambos em Goiás, estoca parte da colheita em silos-bolsa. Na área de 2,7 mil hectares, ele cultiva 19,5 mil toneladas de milho e 10,5 mil toneladas de soja. “Por causa da falta de armazéns, tenho que usar silo-bolsa para 60% da safrinha de milho”, diz Maciel. “Mesmo assim há perdas. Muitas vezes, a embalagem rasga e perdemos o produto.” A construção de silos nas fazendas é uma saída que atenuaria as perdas. Isso porque a média de volume que fica pelo chão, entre o transporte da lavoura até um armazém de terceiros, é de 0,5%. Na última safra, entre soja e milho, a estimativa é de que um milhão de toneladas ficou pelas estradas nesse trajeto.

Mas o trabalho para encher as fazendas com armazéns não será fácil, porque falta crédito. Na safra 2017/2018, o Programa para Construção e Ampliação de Armazéns recebeu do governo um volume para crédito da ordem de R$ 1,6 bilhão, valor 64% inferior ao de dois atrás. O crédito explica o motivo da capacidade de armazenagem nas fazendas ser de apenas 26 milhões de toneladas. O volume equivale a 16% da capacidade de armazéns instalados no País, que é de 162,8 milhões de toneladas, de acordo com a Esalq-Log. Comparado com outros países, isso é muito pouco. Nos Estados Unidos, a capacidade média de armazenagem nas fazendas é 302,5 milhões de toneladas, volume equivalente a 55% de toda soja e milho cultivados no país.

“Mas, em algumas regiões do Corn Belt (Cinturão do Milho, em inglês) ela chega a 90%”, afirma Péra. No caso do Brasil, se todos os armazéns estivessem nas fazendas, haveria uma redução de perdas da ordem de 22% na safra. Isso representa 594 mil toneladas de soja e milho por cerca de R$ 570 milhões, baseado nos dados da Esalq-Log. Outro erro que leva a perdas na fazenda ocorre na pesagem do grão. De acordo com o executivo Paulo Haegler, presidente da Toledo do Brasil, fabricante de balanças, com sede em São Bernardo do Campo (SP), um produtor pode perder dinheiro com a falha na pesagem ou com uma multa por excesso de carga no caminhão. “É aceitável um erro de pesagem de até 40 quilos para cada carga com 30 toneladas”, afirma Haegler. No caso da soja, o prejuízo seria de no máximo R$ 1,80 por tonelada.

PREÇOS De modo geral, o desperdício de alimentos exerce um papel importante na formação de preços ao mercado consumidor. Em 2016, o valor das perdas nas redes de varejo chegou a R$ 7,1 bilhões em alimentos aptos ao consumo, mas jogados fora por danos ou aparência, de acordo com a Associação Brasileira de Supermercados. Isso equivale a 2% da receita do setor, que naquele ano foi de R$ 338,7 bilhões. No ano passado ela foi de R$ 353,2 bilhões. “As perdas de alimentos refletem no aumento de preço ao consumidor, próximo de seu valor integral”, afirma Antônio Gomes, pesquisador do laboratório de Fisiologia e Tecnologia Pós-Colheita de Frutas e Hortaliças da Embrapa Agroindústria de Alimentos, no Rio de Janeiro.

“Porém, o dano à economia não termina aí e o produtor também acaba arcando com o prejuízo.” Por exemplo, um supermercado que compra 100 caixas de alguma fruta ou hortaliça, mas consegue vender apenas 80, aumenta o preço ao consumidor para cobrir as perdas, mas não repassa essa diferença ao produtor. Ele receberá por 80 caixas. “São as duas pontas que pagam pelo prejuízo”, diz Gomes.

No caso das frutas e das hortaliças, da embalagem ao caminhão, as perdas seriam bastante reduzidas se o transporte fosse mais eficiente. Isso porque o tipo de embalagem muitas vezes é inadequado, o que danifica e contamina o produto. “Ocorre com as caixas de madeiras, mas também com as de plásticos, já que muitas vezes não são limpas”, afirma Gomes. “Isso, quando os caminhoneiros não transportam o produto a granel, na própria carroceria, para diminuir o peso a ser transportado.” Outra forma de desperdício que pode ser evitada facilmente está em não preencher as caixas com produtos acima de sua capacidade. Por exemplo, é normal uma caixa com capacidade de 15 quilos receber até 18 quilos, o que acaba também danificando o produto.