O ditado popular ensina que é “o olho do dono que engorda o gado” e na pecuária moderna isso continua valendo. Mas apenas engordar a boiada já não basta. Diante da demanda de um consumidor cada vez mais exigente, muitos pecuaristas começam a se preocupar com a qualidade do produto que colocam no varejo e não somente com o ganho de peso na balança do frigorífico. A visão de futuro tem levado à melhora da eficiência e da rentabilidade do negócio, seja pelo menor tempo de permanência dos animais na fazenda, seja pelas bonificações alcançadas sobre o valor da arroba vendida aos frigoríficos.
“Carne de boa qualidade vem de animal jovem, pesado, bem acabado e, de preferência, castrado”, diz o professor Pedro de Felício, da Faculdade de Engenharia de Alimentos da Unicamp, em Campinas, no  interior de  São Paulo. O MAPA DA CARNE DE QUALIDADE, projeto da série Desafio 2050, saiu em busca de quem está apostando nesse modo de fazer pecuária e encontrou alguns exemplos de peso.

Entre eles está o empresário Donizete Meira Fernandes, diretor do grupo Meira Fernandes, com fazendas em Mato Grosso do Sul e negócios na área de educação, na capital paulista, e o pecuarista Antônio César Negrisoli, também de Mato Grosso do Sul. Fernandes e Negrisoli são pecuaristas que optaram por produzir carne, em vez de apenas contentar-se em engordar o boi. Fernandes diz que o apreço pela
pecuária foi herança do pai e do avô, também produtores de gado. Ele já figurava entre os pioneiros da década de 1980, que introduziram no País a raça pardo-suíço corte (braunvieh, no nome original), ao ganhar 100 doses de sêmen para emprenhar vacas nelore. “O resultado do cruzamento mostrou que era possível produzir animais de carne macia, suculenta e saborosa”, diz. A partir daí, o produtor passou a importar touros da Suíça, do Canadá, dos Estados Unidos e do México, iniciando um longo aprendizado. Após testar vários tipos de cruzamentos, ele acredita que chegou ao que considera ideal: um animal tricruzado para o abate. As vacas meio-sangue nelore e pardo-suíço corte são inseminadas com material genético de touros angus, e todos os filhos são criados e abatidos. Segundo ele, o cruzamento triplo permite produzir uma carne que não peca pelo excesso ou pela falta de gordura, bem ao gosto do paladar brasileiro. “É o que o mercado demanda e eu quero estar onde o mercado está”, diz. 

Acostumado a fazer contas, Fernandes vê a atividade pecuária cada vez mais acuada pela agricultura. “Por isso é preciso intensificar, fazer gado de ciclo curto e competir com a lavoura”, diz. Para girar a engrenagem, o produtor faz cria na fazenda Meira Fernandes do Sul, no município de Jardim, onde mantém 2,5 mil matrizes. A recria e o confinamento são feitos na fazenda Módulo Imbira, em Sidrolândia, próximo de Campo Grande. Por ano, são engordados em confinamento 600 animais entre machos e fêmeas, e outros 400 recebem alimentação no pasto. Os números comprovam que a aposta na qualidade dá certo. No mês passado, a fazenda recebeu R$ 143 por arroba, R$ 8 a mais sobre o valor de balcão no dia da venda. Um comparativo mostra o impacto do ganho extra de 10% sobre a rentabilidade do negócio. Sem o bônus pago pelo frigorífico, o lucro líquido por arroba produzida por Fernandes no confinamento seria de R$ 67, ou R$ 511 para um animal de 20,3 arrobas e rendimento de carcaça de 54,5%. Com a bonificação, o lucro líquido sobe para R$ 74 por arroba. 

De acordo com Rogério Raul Galetti, gestor agropecuário da Meira Fernandes, além do investimento em genética, o resultado pode ser creditado à excelência em nutrição. “Olhar para o que o boi come resulta em uma carcaça de alta qualidade, desejada por diversos programas de qualidade de carne”, diz Galleti. Para o veterinário Gabriel Rezende Junqueira, gerente de projetos especiais da JBS, ter um
mercado aberto faz toda a diferença. “Como essa carne da Meira Fernandes já tem um consumidor fidelizado, nós conseguimos bonificar o produtor”, afirma Junqueira. “Nesse caso, com o projeto Raças Britânicas implantado na unidade  de abate de Campo Grande.” 

Responsável pela dieta no confinamento da Meira Fernandes, o veterinário Lessandro de Andrade Dossi, gerente técnico da empresa de nutrição DSM- Tortuga, reforça a necessidade de caprichar na
alimentação, visando justamente um animal mais valorizado. “Peso é fundamental, mas sem gordura fica difícil fazer carne de qualidade”, diz Dossi. No confinamento de Sidrolândia, os animais ganham em
média dois quilos por dia. 

FRIGORÍFICOS

Experiência como a da Meira Fernandes está no radar da indústria frigorífica, que disputa palmo a palmo por esse tipo de criador de boi. O grupo JBS, da Holding J&F, por exemplo, criou uma ferramenta chamada Farol da Qualidade para mapear o abate, com dados que retornam ao pecuarista na forma de um pacote informativo que pode ser acessado através de um site exclusivo para os produtores. “É um recurso excelente porque ajuda o pecuarista a identificar o que precisa ser melhorado”, diz Galetti.  

Em geral, quando um produtor envia sua produção para o frigorífico, na maior parte dos casos recebe um relatório contendo o peso e o rendimento de carcaça dos animais, referente à carne ainda com osso. Com o Farol da Qualidade, a lista de dados aumentou. Nela, consta se um animal é fêmea ou, no caso de machos, se são castrados ou inteiros. Também consta o número de dentes permanentes, apontando a idade do animal, e a quantidade de gordura sobre a carcaça, que pode ser ausente, escassa, mediana, uniforme e excessiva. A exemplo da orientação aos motoristas no trânsito, o Farol da Qualidade se vale das cores vermelha, amarela e verde para “alertar” o pecuarista, indicando se o padrão da carcaça do animal que foi para o gancho está “indesejável”, “tolerável” ou “desejável”, numa analogia ao “pare”, “atenção” ou “siga em frente”. “O Farol é como uma ferramenta de tipificação de carcaça e isso é importante para orientar o pecuarista”, afirma Felício, da Unicamp, que capacitou os funcionários da JBS para a função.

O pecuarista Antônio César Negrisoli, dono da fazenda Mitaí Antônio, em Campo Grande, aprovou a ferramenta da JBS exatamente pelo papel de “feedback” que ela assume. “Ela permite, por exemplo,
aprimorar ainda mais a gestão do confinamento”, diz Negrisoli. O criador faz ciclo completo na pecuária, do nascimento ao abate, e engorda em confinamento 1,5 mil animais por ano. Pela arroba também tem recebido um bônus de R$ 8 na JBS. “O bônus paga cerca de um terço do custo da comida do confinamento”, diz Negrisoli. “Quero mais, mas já é uma boa medida.” 

Para a zootecnista Ana Carolina Wider Marques, técnica do departamento de corte da ABS Pecplan, uma das maiores empresas de venda de sêmen no País, o Farol da Qualidade pode levar o produtor a pensar em toda a cadeia produtiva do boi e não apenas no resultado imediato do abate. “Quando um pecuarista vê que não tem gordura na carcaça do boi e que esse animal foi bem nutrido, pode acender a luz de que aí falta genética, por exemplo”, diz Ana Carolina. Não por acaso, no mercado de sêmen de gado de corte, que cresce a uma taxa de 5% ao ano – em 2013 foram oito milhões de doses –, os criadores têm procurado cada vez mais por touros superiores que transmitam aos seus filhos características relacionadas à carcaça. “Os produtores estão se dando conta de que é a carcaça que paga a conta”, diz Ana Carolina. “E que é preciso gerir igualmente, e de forma eficiente, a genética e a nutrição.”