O ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), antecipou o fim de sua licença médica e retornou ao trabalho nesta sexta, 25. O afastamento inicialmente estava previsto até este sábado, 26, mas foi encerrado na quinta, 24. Com isso, o inquérito que apura suposta interferência política do presidente Jair Bolsonaro na Polícia Federal retornam para as mãos do decano.

Segundo o Estadão apurou, Celso de Mello deve retirar do plenário virtual a análise do recurso da Advocacia-Geral da União (AGU) que questiona sua decisão sobre a oitiva de Bolsonaro no inquérito. O processo foi enviado para julgamento virtual na quarta, 23, pelo ministro Marco Aurélio Mello, que relatou o caso durante a ausência do decano.

Marco Aurélio também antecipou seu voto no sistema, antes mesmo do julgamento começar, o que está previsto para 2 de outubro. Nos bastidores, a ofensiva do vice-decano foi interpretada como um ‘atropelo’ e uma forma de pressionar o Supremo a decidir o quanto antes sobre a polêmica envolvendo Bolsonaro e seu depoimento. O ministro votou a favor de uma oitiva por escrito, contrariando a decisão de Celso de Mello, visto como uma ‘bússola’ e ‘farol’ entre colegas da Corte.

Em agosto, o decano determinou ao presidente que comparecesse presencialmente para depor na PF, se baseando no entendimento de que Bolsonaro é investigado no caso e não tem a prerrogativa de uma oitiva por escrito. A decisão foi amparada em diferentes precedentes da Corte.

Segundo o Estadão apurou, Celso de Mello está tranquilo e convicto dos fundamentos técnicos da sua decisão de 64 páginas e não quer deixar o STF, em novembro, com essa situação pendente. Uma das medidas em análise pelo magistrado é a de apresentar uma ‘questão de ordem’ para que o plenário analise o caso o quanto antes – mas em uma sessão ‘presencial’. A percepção na Corte é a de que o decano tem mais chances de convencer os colegas em uma sessão transmitida ao vivo pela TV Justiça, com todos ouvindo seus argumentos.

No plenário virtual, por outro lado, os magistrados apenas depositam seus votos no sistema, sem troca de ideias ou debates. A ferramenta, com seus julgamentos discretos, também reduziria os constrangimentos de ministros que eventualmente venham a discordar da opinião do decano para abraçar os argumentos da defesa de Bolsonaro.

Depoimento por escrito

Marco Aurélio antecipou a divulgação de seu voto no qual defendeu a possibilidade de uma oitiva por escrito de Bolsonaro. O ministro citou decisões dos ministros Edson Fachin e Luis Roberto Barroso que autorizaram o depoimento do então presidente Michel Temer em dois inquéritos distintos.

“Em um Estado de Direito, é inadmissível o critério de dois pesos e duas medidas, sendo que o meio normativo é legítimo quando observado com impessoalidade absoluta”, escreveu o ministro em seu voto.

A Procuradoria-Geral da República (PGR) também se alinhou à AGU a favor do depoimento por escrito. Em manifestação enviada à Corte, Augusto Aras defendeu a possibilidade deste tipo de oitiva a Bolsonaro e disse que a decisão de Celso de Mello tem ‘inconsistência’ em seu ‘raciocínio jurídico’.

Segundo o PGR, um cenário de depoimento presencial possibilita ao presidente deixar de comparecer ou ficar em silêncio, ‘situações em que nada acrescentaria à apuração em curso’.

“Se o ordenamento jurídico pátrio atribui aos chefes dos Poderes da República a prerrogativa de apresentar por escrito as respostas às perguntas das partes quando forem testemunhas, situação em que há, ordinariamente, a obrigatoriedade de comparecer em juízo e de falar a verdade, sob pena de responderem criminalmente, com mais razão essa prerrogativa há de ser observada quando forem ouvidos na qualidade de investigados, hipótese em que aplicável o direito ao silêncio, de que decorre sequer ser exigível o comparecimento ao ato”, apontou Aras.

Relatoria

A proximidade da aposentadoria compulsória de Celso de Mello, em novembro, reacendeu na Corte a discussão sobre quem deve assumir a relatoria do caso. Até agora, integrantes do STF se dividem sobre o tema. “Ante a urgência de todo e qualquer inquérito, há de ser distribuído (a outro ministro). Não aceito simplesmente herdar”, disse Marco Aurélio ao Estadão, ao defender um sorteio eletrônico para definir o novo relator, após a saída de Celso.

“Sou substituto do ministro Celso de Mello, não pelo patronímico Mello, mas por antiguidade. E não aceito designação a dedo. Mas, como os tempos são estranhos, tudo é possível.”

O regimento interno do STF prevê que o relator seja substituído pelo ministro imediato em antiguidade em caso de licença “quando se tratar de deliberação sobre medida urgente”.

Ao completar 75 anos em 1º de novembro, Celso de Mello vai se aposentar compulsoriamente, abrindo a primeira vaga na Corte para indicação de Bolsonaro. O regimento interno do STF prevê que, em caso de aposentadoria do relator, o processo é herdado pelo ministro que assume a vaga.

Dessa forma, o nome que vier a ser escolhido por Bolsonaro deve assumir o acervo de processos de Celso de Mello – o que abre margem para a insólita situação de um ministro indicado pelo chefe do Executivo assumir a relatoria de um inquérito que investiga o próprio presidente da República.

Segundo o Estadão apurou, a equipe de Fux avalia que essa tradicional regra deve ser mantida, mesmo em se tratando desse inquérito que atinge diretamente Bolsonaro.

“Seria muito ruim que o presidente estivesse na posição de nomear o ministro ou ministra que assumiria a relatoria de um inquérito contra ele. Se essa situação acontecer, espero que o Senado questione o indicado ou indicada sobre isso e, idealmente, perguntaria se ele ou ela se comprometeria em se declarar sua suspeição e pedir a redistribuição caso isso ocorresse”, avaliou o professor Thomaz Pereira, da FGV Direito Rio. “Mas o melhor seria que o inquérito fosse redistribuído antes disso, para esse debate não dominar a conversa em torno da nomeação, ofuscando outros temas de grande importância.”

Um ministro do STF ouvido reservadamente pela reportagem aponta que Marco Aurélio poderia continuar com o inquérito. Dessa forma, quando o sucessor de Celso de Mello assumir a cadeira do tribunal, após ser indicado por Bolsonaro, aprovado pelo Senado e empossado, a apuração possivelmente já teria sido concluída.

Pelo regimento interno do STF, em certos casos (como habeas corpus e extradições), o presidente da Corte pode determinar a redistribuição do processo, se o interessado ou o Ministério Público solicitar. O dispositivo também pode ser acionado em “caráter excepcional” nos demais processos.