Marcelo Neri, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

Pesquisador de políticas sociais, educação e microeconometria, o economista Marcelo Neri já avaliou as políticas públicas de mais de 20 países. Depois de seis anos como pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2000 Neri fundou o Centro de Políticas Sociais da Faculdade Getulio Vargas (CPS/FGV), instituição na qual ainda é professor. Em setembro do ano passado, ele foi convidado para assumir a presidência do Ipea. Além da mudança de cargo, Neri publicou em 2012 o livro Superação da pobreza e a nova classe média no campo, que traça a evolução do trabalho rural no País nas últimas décadas. Para ele, os dados surpreendem. “Houve um aumento de 49% na renda da população rural, enquanto nas áreas metropolitanas o crescimento de renda foi de 16%”, afirmou à DINHEIRO RURAL .

DINHEIRO RURAL – Qual é o atual cenário do campo brasileiro?
MARCELO NERI –
Somos uma potência do agronegócio, reconhecida no Exterior, e, no entanto, o campo não é tão visto e entendido pela nossa própria população, hoje majoritariamente urbana. O Brasil, que é a atual fazenda do mundo, tem apenas 15% de sua população residindo fora das cidades. Em outros países em desenvolvimento, como a Índia e a China, mais da metade da população ainda é rural.

DINHEIRO RURAL – Mas então, por que a classe média rural tem chamado tanto a atenção no País?
NERI –
Porque o campo é a parte mais antiga e pobre do Brasil, e até pouco tempo atrás parecia ainda não ter chegado ao século 21. Mas essa classe vem mudando numa velocidade impressionante.

DINHEIRO RURAL – Quais foram essas mudanças?
NERI –
Houve uma expansão da classe média, redução da desigualdade social e da pobreza no campo. Entre 2003 e 2009, a classe média rural saltou de 5,3 milhões de pessoas para nove milhões, um crescimento de 70%. Essa classe representava 20,6% da população rural em 2003 e foi a 35,4% em 2009. Segundo algumas projeções,  a classe C corresponderá a aproximadamente metade da população que vive no campo, já em 2014.

DINHEIRO RURAL – Qual foi a evolução na renda dessas pessoas?
NERI –
De 2000 a 2009, houve um aumento de 49% na renda da população rural, enquanto nas áreas urbanas o crescimento de renda foi de 16%. De 2003 a 2009, a renda per capita média do brasileiro que vive no campo cresceu 6,1% ao ano, em termos reais, já descontados a inflação e o crescimento populacional. A renda per capita no campo passou de R$ 212,58 para R$ 303,30 no período, enquanto o crescimento médio da renda nacional foi de 4,72% ao ano, passando de R$ 478 para R$ 630 mensais.

DINHEIRO RURAL – E a pobreza e a desigualdade social?
NERI –
Em 1992, ano em que foi estabelecido o novo questionário da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), o Brasil contabilizou mais de 50 milhões de miseráveis. Apesar de conter apenas 18% da população total de brasileiros, que era de 145 milhões, o meio rural concentrava 28% dos mais pobres. Para cada dez pessoas que viviam no campo, seis encontravam-se abaixo da linha de pobreza em 1992. Mas o processo de urbanização já em curso prosseguiu e o País diminuiu em cerca de 50% a taxa de pobreza rural. A desigualdade está caindo de maneira sistemática pela primeira vez em 50 anos de história documentada. Na última década, ela caiu todos os anos.

DINHEIRO RURAL – Quais fatores impulsionaram essas mudanças?
NERI –
No agronegócio foi pela agricultura familiar, mas o principal fator que promoveu os avanços da classe média rural foi a expansão das transferências públicas. O programa Bolsa Família, as políticas de reajuste para o salário mínimo e a aposentadoria rural tiveram um incremento forte nos últimos anos, além do aumento do número de beneficiados. De 2003 a 2009, a fonte de renda que mais cresceu no campo foi a de programas sociais, de 21,4% ao ano, ante 12,9% da média nacional. Boa parte desse ganho veio de programas sociais, cuja participação na renda subiu de 27%, em 2003, para 35%, em 2011.

DINHEIRO RURAL – Essas políticas devem continuar?
NERI –
Sim, nos próximos anos, em função de programas como o Brasil Sem Miséria, que tem uma ênfase rural. Também fazem parte dessas políticas o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) e o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que fortalecem a agricultura familiar. O principal lema do governo é que um país só é rico se não há pobreza. Então, apesar de essas políticas já terem se expandido muito, ainda não houve sinal de esgotamento.

DINHEIRO RURAL – O trabalho no campo está mudando?
NERI –
Está havendo um aumento da qualidade do trabalho rural, ao mesmo tempo que a agricultura de subsistência está diminuindo. Houve um aumento de produtividade, medida pelo salário-hora, que cresce 3,4% ao ano, e a jornada de trabalho tem caído mais no campo. No entanto, a renda proveniente do trabalho passou a ser relativamente menos importante na área rural do que no restante do País. Em 1992, o trabalho gerava 81,3% da renda domiciliar per capita média no campo, próximo ao valor para a totalidade do Brasil. Mas, a partir de 1996, teve início um longo período de declínio. Em 2009, a renda do trabalho constituía 66,5% da renda média do brasileiro que vive no campo, contra 76% da média nacional.

DINHEIRO RURAL – Houve também avanços na educação?
NERI –
Há muito a avançar em políticas educacionais para o campo e é preciso investir especialmente em educação técnica. Embora os investimentos no setor estejam ocorrendo, o atraso da educação básica é muito expressivo e o investimento em educação profissional é ainda pequeno. As escolas rurais, por exemplo, não são avaliadas pelo Prova Brasil, que diagnostica a qualidade do ensino oferecido, e pelo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), ambos promovidos pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).

DINHEIRO RURAL – E os gastos com a alimentação?
NERI –
O primeiro boom da classe média ocorreu em 1994, logo após a estabilização e o controle da inflação trazidos pelo Plano Real. O maior sinal desse período era comer frango. Depois, era comer carne. Mas, entre 2003 e 2009, as despesas com alimentos caíram em torno de 7%, enquanto outros dados mostram que a população rural está se sentindo mais alimentada. Isso é um paradoxo interessante e também é sinal de prosperidade. Quem era muito pobre e gastava grande parte da renda com alimentos passou a comprar outros bens. Vale citar o freezer, produto símbolo de conquista para pessoas do campo.

DINHEIRO RURAL – Em que medida essa classe representa um novo mercado consumidor?
NERI –
Algumas empresas começaram a olhar para a população rural com maior interesse, mas para isso elas precisam ter um sistema de distribuição de produtos bem desenvolvido, capaz de atender as regiões mais remotas. Estamos vendo uma nova classe média rural que vem emergindo num velho Brasil que vai querer consumir mais.

DINHEIRO RURAL – A partir de agora, quais são os desafios dessa nova classe?
NERI –
Os desafios são investir em educação para aumentar a produtividade no campo, expandir as telecomunicações e o uso da internet. No âmbito dos serviços básicos, a chegada da energia elétrica ao campo, por meio do Programa Luz para Todos, facilitou a vida das pessoas. Hoje, a principal diferença entre a classe média brasileira e a classe C rural é o isolamento geográfico e o fato de a renda gerada pelo trabalho ter um peso menor.

DINHEIRO RURAL – Esse crescimento é sustentável?
NERI –
Talvez as notícias não sejam boas quando se fala em fonte de renda através do trabalho, já que nas áreas rurais o Brasil está indo melhor sob a perspectiva social do que do ponto de vista econômico. Mas dados do instituto Gallup World Poll mostram o Brasil como terceiro colocado em satisfação na área rural, de um ranking de 132 países. Há algo de sustentável nesse crescimento e medidas subjetivas de bem-estar dão a impressão de que as pessoas estão com boas perspectivas para a vida futura. Nos últimos dez anos, o Brasil deu condições básicas às pessoas mais pobres, especialmente na área rural, mas muita pesquisa precisa ser realizada para entendermos todo esse processo.