Desde os 15 anos de idade, o contabilista Valmir Schneider é um apaixonado por máquinas possantes. Hoje, aos 40 anos, ele dirige uma belezura de 489 cavalos de potência, com GPS, piloto automático e totalmente computadorizada. A máquina, importada da Bélgica, em janeiro, foi paga à vista. Seu valor no mercado é de R$ 1,1 milhão. Mas engana-se quem pensa em vê-lo na direção de uma Lamborghini prata ou de uma Ferrari vermelha. A supermáquina de Schneider, produtor rural do município de Querência, em Mato Grosso, é uma CR 9080 da New Holland, colhedeira com tanque graneleiro com capacidade de 13 toneladas. “Sou um apaixonado por isso”, diz. “Aliás, sempre fui.” Assim como Schneider, Marciano Bernardi, 31 anos, também é produtor rural, mas em Canarana, município vizinho de Querência. “Hoje, a região muda numa velocidade estonteante”, afirma Bernardi. “O que vale para nós é a eficiência. Esse é o desafio.” Valmir e Marciano – assim mesmo, na primeira pessoa, como gostam de ser chamados – são a imagem mais fiel da transformação pela qual passa o nordeste do Estado, considerado a última fronteiraagrícola mato-grossense.

Chamado de Nordeste Agroeconômico pelo Instituto Mato-grossense de Economia Agropecuária (Imea), órgão da Federação de Agricultura e Pecuária do Estado de Mato Grosso (Famato), o Vale do Rio Araguaia abriga 22 municípios que ocupam 170 mil quilômetros quadrados, o equivalente a quase um quinto da área do Estado, mas sua população de 230 mil pessoas responde por apenas 7,5% dos habitantes. Nessa região, a pecuária reinou desde sempre como a atividade econômica principal. Mas, nos últimos anos, graças ao esforço, ao suor e à perseverança de um punhado de pioneiros da agricultura, a região tem cada vez mais cedido espaço para a soja.

Na atual safra estão saindo dos campos do Araguaia 3,7 milhões de toneladas do grão, cultivados em 1,2 milhão de hectares. Em 2021/2022,  daqui a nove safras, a região deve colher oito milhões de toneladas de soja em 2,4 milhões de hectares, um incremento de 104% na produção. A participação da oleaginosa na colheita de Mato Grosso, que hoje é de 5%, passará a 8%. Em valores atuais e se fosse hoje, essa safra movimentaria mais de R$ 800 milhões. O nordeste é a região em que o agronegócio mais cresce no Estado. “Da safra passada para esta, a área plantada no Vale aumentou 50%”, diz o agrônomo Adalberto Basso, da Tropical Melhoramento & Genética (TMG), de Cambé (PR), empresa de pesquisa criada em 2001 por um grupo de agricultores e produtores de sementes em Mato Grosso, que hoje conta com uma equipe de 150 profissionais. “O Araguaia é realmente a última fronteira agrícola do Estado”, diz Basso. “Há algumas manchas de terras boas, como em Poconé, próximo do Pantanal, ou mais ao norte do Estado, como é o caso de Santiago do Norte, mas em grandes extensões somente há terras no Vale.”

Em alguns municípios, o crescimento é avassalador. Segundo o produtor gaúcho Olenir Bernardi, pai de Marciano, há três anos os agricultores de Canarana cultivavam próximo de 80 mil hectares de soja. “Hoje passa de 200 mil hectares”, diz. Bernardi, ou “Nick”, como ele é conhecido na região, é o produtor de soja mais antigo do município e atual viceprefeito da cidade. “Comecei com 30 hectares em 1979, um ano depois da família Maggi”, diz Nick. A fazenda Tanguro, uma das primeiras compradas pelo fundador do Grupo Amaggi, André Maggi, um colosso de 50 mil hectares, está a pouco mais de 60 quilômetros da fazenda Volta Grande, que pertence a Bernardi.

Os Bernardi estão colhendo nesta safra quase 17 mil toneladas de soja em sistema de plantio direto, cultivadas em 5,8 mil hectares. Desse total, o milho entra na segunda safra em 2,4 mil hectares. As lavouras de soja e milho devem render ao produtor cerca de R$ 20 milhões neste ano. Mas os negócios com os grãos vão além: eles incluem uma sociedade com dois amigos em quatro revendas de insumos agrícolas e silos para armazenagem. A receita prevista é de R$ 62 milhões. “Nunca pensei só em dinheiro”, diz Nick. “O que eu não perco são as oportunidades, e elas são muitas na região.”

Um exemplo são os silos. Mesmo com a presença de grandes tradings no Vale do Araguaia, como a Amaggi, Caramuru, Cargill, Ceagro/Los Grobo e ADM, o crescimento tem sido tão acelerado que a estrutura de armazenamento da região tem sido insuficiente para guardar adequadamente todos os grãos. “Como faltam armazéns, aproveitei a brecha”, diz Nick. Na safra 2010/2011, ele, que já tinha um silo com capacidade para 400 mil sacas, financiou US$ 1,4 milhão no banco Rabobank e expandiu a sua capacidade de armazenagem para 600 mil sacas, volume equivalente a 2,4 mil toneladas de grãos. “Gosto de empreender”, diz o agricultor. “Sempre foi assim.” Para bancar a área de cultivo, Nick conta que já tomou emprestados US$ 2,5 milhões no Rabobank. Em 2010, investiu na compra de dez novos equipamentos, entre colhedeiras, pulverizadores e tratores. “Sempre olhei para a frente e nunca vi ano difícil no Vale”, afirma. “Nos anos de agricultura ruim eu só deixei de crescer.” Para quem chegou em Mato Grosso sem conhecer uma colhedeira e começou a vida tirando toco de árvore no cabo da enxada, o salto do negócio foi espetacular.

O produtor Egídio Schneider, pai de Valmir, também está no Vale há mais de duas décadas. Começou com 250 hectares e hoje cultiva 2,4 mil hectares, com a ajuda da família – também trabalha com ele o filho mais velho, Olimar. Nesta safra, eles estão colhendo quase nove mil toneladas de soja e 9,6 mil toneladas de milho. Neste ano, o cereal entra na segunda safra, em 80% do espaço ocupado pela soja na primeira safra. No mês passado, enquanto cinco colhedeiras tiravam a soja do campo, três plantadeiras depositavam o milho na terra. “Em que outro lugar se vê uma cena destas?”, diz Olimar. Na safra passada, a família Schneider havia plantado milho em 60% da área de soja. “O milho é uma ótima dobradinha de cultura”, diz Valmir. “Na rotação com a soja ele é perfeito porque protege e revigora o solo.” Segundo o produtor, o milho veio para ficar e se desenvolve não apenas como uma oportunidade de negócio, em função da seca no Sul do País e nos Estados Unidos na safra passada. “Estamos mais próximos dos portos, em relação a outras regiões produtoras do Estado, e ao lado de Goiás, que tem pecuária forte e demanda por grãos para ração animal”, afirma Valmir.

Segundo ele, o modelo de produção no Vale do Araguaia já está definido. Entre os meses de outubro e janeiro se planta soja. Na sequência, até junho, é a vez do milho. A novidade na região é o feijão irrigado, como terceira safra, entre os meses de junho e agosto. “O milho é a estrela da casa, mas tem muita gente pensando na terceira safra”, diz Valmir. Segundo o Imea, a região nordeste de Mato Grosso vai produzir um milhão de toneladas de milho em 2012/2013, em 217 mil hectares. Mas, na safra 2021/2022, serão 500 mil hectares, com um cultivo quatro vezes maior, elevando a participação na produção do Estado dos atuais 7% para 14%.

Os Schneider e os Bernardi, herdeiros da primeira geração de agricultores gaúchos que chegaram à região há cerca de três décadas, servem de exemplo para os produtores que estão investindo na agricultura, onde antes só havia gado. “Há dez anos o preço da arroba do boi gordo é o mesmo, situação que não acontece com a soja”, diz Evaldo Diehl, dono da fazenda Três Irmãos, produtor de soja e prefeito de Canarana. Para Maurício Tonhá, diretor do grupo Estância Bahia, de Água Boa, somente vai ficar na pecuária quem utilizar mais tecnologia. “É preciso cuidar do pasto como se fosse agricultura e confinar o gado”, diz Tonhá. Um dos maiores promotores de leilões de gado do País, Tonhá é dono de confinamento na região, cultiva milho e também está começando a plantar soja. “Não há como não ceder espaço para a soja e o milho na região.” No Vale, o rebanho é de 5,1 milhões de animais, volume que representa 19% do plantel do Estado. Na região está a segunda maior concentração de bovinos de Mato Grosso, só perdendo para o norte do Estado, com 5,2 milhões de animais.

O pecuarista Pedro Gomes Rodrigues, da fazenda Sapezal, se rendeu à soja neste ano. O negócio ainda é pequeno, mas ele já sabe o caminho do crescimento. Entre terras arrendadas e próprias, Rodrigues cultiva 730 hectares nos municípios de Ribeirão Cascalheira e Canarana. A soja foi plantada em 120 hectares, mas na próxima safra o projeto é aumentar para 350 hectares. “Vou para a agricultura porque esse é o caminho natural, mas não pretendo abandonar a pecuária”, diz Rodrigues. “Quero engordar 400 novilhas por ano, mas, daqui para a frente, em pastos melhorados.” Antes de se decidir pela integração lavoura-pecuária, o abate era de 250 animais por ano.

Outro exemplo de rendição à soja é o do produtor João Carlos Paris, da fazenda Talismã, em Canarana. De mil hectares, entre área própria e arrendada, metade foi destinada ao plantio do grão. É a quarta safra consecutiva da Talismã, mas não é a primeira investida de Paris nessa cultura. Entre 2001 e 2003 ele plantou 190 hectares. No entanto, a produção de 40 sacas por hectare não sobreviveu à crise do setor a partir da safra 2004/2005, depois de um período de seis anos de crescimento ininterrupto. Naquela época, a crise na soja foi causada por uma conjunção de fatores, entre eles o câmbio, elevadas perdas de produtividade das lavouras por dois anos consecutivos e endividamento dos produtores, combinados com escassez de crédito. “Agora é tudo muito diferente”, diz Paris. “Além de a realidade ser outra, meu plano é fazer a terra produzir o máximo possível e investir devagar.” No início do mês passado, Paris e Rodrigues participaram de um dia de campo em Canarana, na fazenda Volta Grande, de Nick, promovido pela Fundação de Apoio à Pesquisa Agropecuária de Mato Grosso (Fundação MT), com sede em Rondonópolis. O dia de campo contou com quatro estações para atividades. Uma era dedicada especificamente à soja. Nas demais estações os temas eram mercado, pragas e pesquisa. O consultor Leonardo Sologurem, da Clarivi, de Uberlândia (MG), montou gráficos e tabelas sobre os fundamentos do mercado, mostrando que nas últimas cinco safras a produção mundial de grãos aumentou 7%, enquanto o consumo aumentou 9,5%. “O Brasil tem respondido a essa demanda plantando muita soja e apostando no milho”, diz Basso, da TM&G, que também era o responsável pela estação de pesquisas. Para Sologurem e Basso, mesmo que o excesso de chuva em algumas regiões tenha atrapalhado a colheita desta safra, o País deve fechar o período com mais de 80 milhões de toneladas de soja, ante 66 milhões na safra passada, segundo a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). De Mato Grosso deverão sair acima de 24 milhões de toneladas, 12% a mais que na safra 2011/2012. Durante o evento na Volta Grande, enquanto Bernardi recebia os convidados, seu filho Marciano não se desligava das atividades nas estações. “Tudo muda muito rapidamente”, diz ele. “É muito diferente de quando meu pai começou.” Segundo o produtor, uma máquina comprada pelo pai em 1984 ainda era considerada atual em 1998. “As novidades da tecnologia tinham esse ritmo. Hoje, a cada dois anos, ficamos ultrapassados se não estivermos atentos”, afirma ele, de olho numa pulverizadora da Jacto estacionada ao lado de uma das estações.