Uma decisão do Tribunal de Justiça Militar de São Paulo apontou que dois policiais militares agiram com “muito excesso” ao atirarem dezenas de vezes contra dois homens considerados suspeitos de um roubo, sem que eles tivessem efetuado nenhum disparo contra os agentes. O laudo apontou que as vítimas morreram com mais de 20 perfurações, cada, totalizando 50 marcas de projétil nos corpos de ambas. Três policiais foram presos preventivamente pelo caso.

Os policiais atendiam uma ocorrência após uma denúncia de roubo na quarta-feira, 9, quando perseguiram o veículo dos suspeitos, que acabou se chocando e parando no cruzamento das ruas Dr. Rubens Bueno e Castro Verde, em Santo Amaro, zona sul da capital. Os agentes relataram que houve reação por parte deles, o que justificaria os disparos realizados. Mas um vídeo que ganhou repercussão nas redes sociais dias depois flagrou o momento em que eles disparam uma série de tiros, aparentemente sem nenhuma reação das vítimas.

O relatório da Corregedoria da Polícia Militar afirma que, após análise do vídeo que circulou pelas redes sociais, foi constatado que “não houve qualquer disparo de arma de fogo por parte dos criminosos”, mas sim “muito excesso na ação policial em questão”, como destacou o juiz Ronaldo João Roth. O documento do magistrado ainda aponta para a suspeita de “fraude processual” e de que as armas encontradas com as vítimas foram “implantadas na cena do crime”.

“A imagem de vídeo é clara quando mostra os dois militares se afastando do veículo, após os tiros, sem terem pegado qualquer arma das vítimas alvejadas”, afirma o relatório. No depoimento, prestado antes de a filmagem ter circulado online, os policiais ainda afirmam que, mesmo após terem sofrido 50 perfurações no corpo, os rapazes apresentavam “sinais vitais” e, por isso, os agentes teriam retirado as armas de fogo do carro.

A decisão da Justiça Militar aponta que os policiais tiveram a prisão preventiva decretada após “várias provas” que apontam para “crime doloso contra a vida de civis”, além de uma possível “fraude processual” no local do crime.

A Justiça Militar decretou a prisão preventiva de três policiais envolvidos no caso. De acordo com o inquérito, “a liberdade dos investigados poderá causar grande dano à investigação, uma vez que há suspeita da prática do delito de fraude processual, em razão da divergência da arma informada pela vítima de roubo daquela encontrada com os roubadores alvejados”.

Eles foram encaminhados ao Presídio Militar Romão Gomes. Em nota, a Secretaria de Segurança Pública afirma que as investigações sobre o caso prosseguem pela Corregedoria da Polícia Militar e pelo Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa. “A Polícia Militar não compactua com desvios de comportamento e se mantém diligente em relação às denúncias ou indícios de transgressões ou crimes cometidos por seus agentes”, diz o texto.

Versão de policiais fala em reação à abordagem, mas apresenta divergências

De acordo com a versão apresentada nos depoimentos no âmbito do Inquérito Policial Militar instaurado para apurar o caso, o sargento André Chaves da Silva e o soldado Danilton Silveira da Silva teriam recebido a denúncia de um roubo nas proximidades do batalhão na zona sul da capital paulista. Dois homens, um portando uma pistola e outro desarmado, teriam subtraído três cartões de crédito, uma aliança e chaves da casa e do carro da vítima.

Os agentes então começaram a perseguir os dois rapazes pela suspeita de roubo, quando o carro colidiu com outro veículo e, em seguida, bateu em um poste de energia elétrica. Os policiais militares afirmam que, ao descerem da viatura, os indivíduos dentro do carro teriam supostamente reagido à abordagem e, por isso, foram alvejados.

As versões contadas pelos agentes, entretanto, diferem quanto à abordagem policial e a suposta reação dos rapazes no veículo. De acordo com um dos policiais, o motorista teria aberto a porta da frente após a batida e descido do carro segurando uma arma, o que teria motivado os disparos contra ele, que foi atingido e caiu no interior do veículo.

Já na versão de outro agente que participou da operação, a porta da frente do veículo foi aberta por um dos policiais e não pelo motorista. Neste momento, o jovem que estava no interior do veículo teria supostamente levantado a camisa e tentado sacar uma arma de fogo, o que em tese motivou os disparos dos agentes.

Os dois depoimentos diferem ainda ao relatar que, no banco de trás do carro, a segunda vítima teria ameaçado os policiais e tentado disparar contra eles, o que só não aconteceu porque a arma teria falhado. Em uma das versões apresentadas, o rapaz já estaria com a arma em punho quando a porta traseira foi aberta; na outra, ele teria tentado sacar o revólver, antes de ser alvejado pelos agentes.

A perícia encontrou um revólver de calibre 38 com o rapaz que estava ao volante, assim como cinco balas intactas e a numeração da arma suprimida, o que impossibilitaria inicialmente o seu rastreio. No bolso da outra vítima, foi apreendido um segundo revólver de calibre 32, com quatro balas intactas e uma “picotada”, além de uma chave e uma aliança.

Testemunhas que chegaram ao local por volta das 19h30 e acompanharam o trabalho da polícia até a remoção do carro, à meia-noite, negaram ter visto qualquer arma sendo retirada do veículo ou ouvido disparos saindo do carro. Familiares e amigos do rapaz no banco traseiro também afirmaram que ele nunca possuiu nenhuma arma de fogo. Nenhuma das duas vítimas tinha antecedentes criminais.

‘Eles vão matar a gente’, disse vítima à esposa durante perseguição

Em depoimento prestado na DHPP, a esposa de uma das vítimas diz que recebeu uma ligação do marido durante a perseguição policial. O telefonema foi feito por volta das 19h30 e durou cerca de 50 segundos. Nele, o rapaz se despediu da esposa, com quem estava casado há cinco anos, e disse que amava a filha do casal, de apenas um ano.

“Moiô, moiô, eles vão matar a gente”, disse o rapaz, que trabalhava como entregador de aplicativo. A esposa afirma ainda que recebeu três ligações de números desconhecidos avisando ora que o marido estava preso, ora que ele estava morto.

O outro homem que foi executado durante a operação ajudava o pai a trabalhar com transporte escolar. Com a pandemia da covid-19 e a suspensão das aulas presenciais, entretanto, o negócio dos dois estava parado.

Os familiares afirmam que, ao chegarem no local do crime, encontraram o veículo com as portas fechadas e policiais em volta. Eles teriam pedido informações e autorização para reconhecerem as vítimas, mas foram proibidos pelos policiais. Eles ainda alegam que nenhum socorro foi acionado e só puderam reconhecer os corpos quando eles foram retirados do carro pela perícia.

Outra queixa prestada pelos familiares das vítimas é sobre o tratamento que os policiais teriam deferido aos parentes. Um deles chegou ao local e foi recebido por um agente que, mostrando a foto de um dos rapazes, já perguntou “quantos anos ele tinha”. Outros alegam que foram ameaçados para deixar a cena e, mais tarde, viram os corpos serem “atirados no meio fio”.