Realizado em meio à segunda onda da covid-19, o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) nunca teve tão pouca participação desde que a prova se tornou, em 2009, a principal porta de entrada para o ensino superior. Mais de 2,8 milhões de inscritos deixaram de fazer o exame no último domingo. O número, gigantesco, revela histórias de desalento de Norte a Sul, em um país que tem fracassado na gestão da Saúde e da Educação durante a pandemia.

Rostos pretos, brancos, molhados de suor ou de lágrimas são a cara da abstenção do Enem. Os ausentes no exame são jovens como o Ruan, de 22 anos, que trabalhava como motoboy no Rio enquanto outros da mesma idade faziam a prova. Ou têm história parecida com a da Larissa, de Belford Roxo, na Baixada Fluminense, que perdeu a paz depois de enterrar a tia, infectada com a covid-19, e agora vê os avós no hospital.

Muitos tiveram medo de se contaminar, caso da Manuela, de Juiz de Fora (MG), ou não puderam ir porque já estavam doentes, como o Danilo, de Parauapebas, no interior do Pará. E teve até quem tentou fazer a prova, mesmo com medo, percorreu quase duas horas em um ônibus, mas encontrou as salas lotadas e acabou impedido de entrar – história do Tiago Felipe, em Curitiba.

A segurança do exame, em meio à pandemia, foi questionada na Justiça, mas o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (Inep), órgão do Ministério da Educação (MEC), conseguiu manter as datas. Após o primeiro dia de aplicação, a Defensoria Pública da União (DPU) fez novo pedido para que as provas fossem adiadas e para que o exame seja reaplicado a todos os ausentes, mas a solicitação foi novamente negada. Hoje, estudantes fazem os testes de Ciências da Natureza e Matemática – os resultados do Enem só devem sair em março. As notas são usadas para concorrer a bolsas no ensino superior privado ou a vagas em universidades federais.

No último domingo, o ministro Milton Ribeiro afirmou que o Enem “foi um sucesso”, mesmo com o índice de abstenção de 51,5%. “Para os alunos que puderam fazer a prova, foi um sucesso”, disse.

Já Priscila Cruz, presidente executiva e cofundadora do Todos pela Educação, classifica o último domingo como um fracasso. “O Enem é mais um triste episódio de um Ministério da Educação incompetente, omisso e alheio à realidade da educação, dos estudantes e da pandemia no Brasil.” Ela pede transparência sobre a prova. “A sociedade precisa saber a dimensão dos prejuízos causados.”

O Estadão ouviu cinco jovens que deixaram de fazer a prova no último domingo. Confira os depoimentos.

Larissa Paiva, de 19 anos, moradora de Belford Roxo (RJ)

‘Perdi uma tia e meus avós estão internados’

Meu maior sonho é entrar em uma faculdade. No início do ano, estava estudando para o vestibular, muito animada, até que veio a covid-19. Meu salário foi reduzido e tive de parar o pré-vestibular que estava custeando. Em março, minha tia morreu de covid (uma das 28,2 mil vítimas no Estado). Ela tinha 42 anos, deixou filho e marido. Quem teve de dar a notícia e cuidar de tudo fomos eu e minha prima. Foi um baque.

Aquilo acabou comigo. Tentei estudar por conta própria em casa, mas sozinha é difícil. As coisas estavam ficando cada vez mais complicadas, tinha o medo, porque minha mãe trabalha fora. E o luto. Perdemos amigos, conhecidos, vizinhos. Tivemos de montar uma estratégia para cuidar do meu primo. A gente chorava, secava e falava: ‘Vamos agir’. Ainda queria fazer a prova, até que, em janeiro, minha avó e meu avô foram para o hospital com a covid. Estão internados e sem previsão de alta. Não temos contato. Ali percebi que não tinha mais estrutura para fazer o Enem. Não tenho cabeça, meu psicológico está abalado, são muitas informações.

Me sinto frustrada, inútil, quero tentar, mas não consigo, parece até que não tenho força de vontade. Meu sonho é estudar Direito porque, quando eu era pequena, não tínhamos nada em casa para comer e minha mãe foi a um supermercado para pegar comida – não roubou nada de bom, só arroz e feijão. Levaram-na para o meio do mercado e falaram que chamariam a polícia. Eu era muito pequena e comecei a chorar até que veio uma moça que falou que era advogada e defendeu minha mãe, pagou as compras e um táxi para voltarmos para casa. Depois disso, pensei: preciso ser advogada e fazer o que ela fez. Vou ficar pior quando a nota de todo mundo que fez o Enem sair, eu vir as pessoas entrando em uma universidade e cair a ficha de que não vou conseguir neste ano.

Ruan Felipe Machado, de 22 anos, morador da Maré, no Rio

‘Abri mão da prova. Eu tinha de trabalhar’

No começo de 2020, resolvi que voltaria a estudar. Lembrei do cursinho popular do Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré e fui. O pessoal me ajudou bastante, mas infelizmente a pandemia me quebrou. Estudei até março, mas, quando as aulas online começaram, nunca batiam com meu horário livre.

Pego serviço do meio-dia às 23 horas. E não ia parar de trabalhar para assistir às aulas online. Se eu não trabalhasse, iam faltar coisas em casa. E nunca que vou deixar isso acontecer. Ano passado, trabalhei em restaurante e como entregador iFood de bike até conseguir meu emprego de motoboy. Terminei o ensino médio em 2018, quando nasceram minhas filhas gêmeas.

Em 2020, consegui isenção e seria a primeira vez que eu tentaria fazer a prova. Pelo menos esse ano, abdiquei de estudar e abri mão do Enem. Eu tinha de trabalhar.

Tiago Felipe de Souza, de 23 anos, morador de Curitiba

‘Disseram que teriam de me dispensar’

Saí com antecedência de casa, fui de ônibus fazer o Enem e levei 1h40 para chegar ao local da prova (em Curitiba). Entrei até a porta da sala, chegaram a pegar meu documento e então avisaram de um problema: os 50% da capacidade da turma já estavam atingidos e teriam de me dispensar. Só anotaram meu nome e CPF em uma folha de A4 – agora estou refém de um papel.

Lá fora, mais alunos falaram da mesma situação: enfrentaram fila, foram barrados, estavam desesperados. Quando você está estudando, cria planos de tirar boa nota, tem a tensão do preparo, está ansioso. O Enem é uma prova complexa. Receber essa notícia faz desabar o mundo. A única solução era ir para casa, pois fomos orientados a sair do prédio. Tinha tudo para dar certo, a estrutura não deixou.

Eles tinham de estar preparados para ter outra sala. Sinto que estamos perdidos por todos os lados, na educação e na saúde. Foi total falta de informação e planejamento, o que nos resta é aguardar essa segunda prova. Quero fazer um curso na área de Comunicação em uma universidade pública. O ministro falou que a prova foi um sucesso. Pergunto: sucesso para quem?

Vejo como uma tragédia.

Manuela Verli, de 18 anos, moradora de Juiz de Fora (MG)

‘Preferi não arriscar a vida dos meus pais’

Desisti da prova por causa da covid-19. Meus pais são do grupo de risco e eu não queria arriscar a minha vida e a deles. Meu pai tem problema de coração e diabete, e minha mãe tem aneurisma. Esse seria meu primeiro Enem.

Sou aluna de escola pública e estava estudando por conta própria. Não é a mesma coisa que um cursinho ou uma escola particular, mas estava tentando o meu melhor e, por isso, fiquei frustrada por não fazer. Foi uma escolha minha e não me arrependo. A minha vida e a dos meus familiares sempre vão vir em primeiro lugar, mas ainda tem aquela sensação de estar jogando uma oportunidade no lixo.

Duas semanas antes da prova, já estava sentindo medo e preocupação. Na semana do Enem, me perguntei se deveria ir. Aumentaram os casos na minha cidade, teve aquela situação em Manaus (falta de oxigênio) e percebi que não valia a pena.

Sou muito ansiosa com essas coisas de futuro. Tem aquela coisa de que ‘se eu não fizer agora, não vou ter chance nenhuma’. Conversei com minha mãe e meu irmão, que me acalmaram, e bati o martelo no sábado de que não iria.

É uma decisão difícil? É. Estou perdendo a isenção e a chance de ver como funciona. Ainda tinha esperanças que adiassem. No dia da prova, fiquei indignada, com raiva e muito frustrada. É frustrante ver que o futuro do País é tratado desse jeito.

É um sonho fazer faculdade e estou tentando conseguir. Vejo que essa prova poderia decidir o meu futuro ou, pelo menos, poderia ter arrumado meu futuro mais cedo. Fica a questão: ‘E se eu tivesse conseguido passar?’

Danilo Ferraz, de 18 anos, morador de Parauapebas (PA)

‘Tive sintomas e o cuidado de dizer não’

Comecei a ter sintomas da covid-19 cinco dias antes do Enem. Descobri que estava contaminado e precisei entrar com processo para reaplicação. Meus sintomas foram leves, dor de garganta, e só depois do teste é que senti febre. Perdi paladar e olfato.

Fiz cursinho durante o ano e não foi muito fácil porque estava tudo a distância, mas eu estava tentando me preparar da melhor forma. Quero prestar Medicina. Foi frustrante ter covid porque estava tão perto do Enem… No dia do exame, quando deu 12 horas, pensei: ‘O que faço agora?’ Estava todo mundo fazendo a prova. Mas nunca cogitei prestar o exame contaminado. Tive o cuidado de falar não.

Vejo em Manaus a falta de oxigênio e tenho medo de apresentar um quadro mais grave. Hoje estou bem, mas amanhã não sei.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.