Queijos franceses: entrada liberada e a preço de ouro

Na primeira semana de julho, a presidente Dilma Rousseff assinou um decreto determinando um prazo de 60 dias para que o Ministério da Agricultura (Mapa) responda aos pedidos de adesão ao Sistema Unificado de Atenção Agropecuária (Suasa), um conjunto de normas que permite que produtos fiscalizados pelos órgãos estaduais ganhem, automaticamente, o direito de ser vendidos em todo o País. Parecia uma vitória dos pequenos produtores, que, graças à falta de uma licença federal, só podem vender seus queijos, iogurtes, salames e outros produtos de origem animal no município, ou no máximo no Estado em que foram produzidos. Na prática, porém, o decreto presidencial representou a derrota do Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA) na briga interna com o Ministério da Agricultura. É o Mapa que controla o Sistema de Inspeção Federal (SIF), que parece não estar disposto a criar facilidades.

As normas do SIF foram editadas em 1952 e, segundo especialistas, são adequadas para grandes indústrias, mas não para os pequenos agricultores. “Esse decreto não resolve nada. É um balde de água fria”, reagiu o gerente de Educação Sanitária e Apoio à Agricultura Familiar do Instituto Mineiro de Agropecuária (IMA), Pedro Hartung.

Em todo o País, são 4,3 milhões de agricultores familiares, responsáveis por grande parte da produção de arroz, feijão e milho, e também de leite, aves, suínos, ovinos e caprinos. Boa parte deles só vende produtos in natura, por falta de recursos para agregar valor ao que tiram do campo. Mas é somente quando um porco vira salame ou o leite vira iogurte ou queijo que esse produtor consegue aumentar sua renda. Porém, por causa da escala diminuta em que trabalham, é impossível às pequenas indústrias cumprirem com todas as exigências da legislação do SIF.

Queijo: somente quando os produtos são processados é que o produtor consegue renda maior

“A legislação brasileira é imprópria para a agricultura familiar. Ela é inimiga da formalização”, diz o diretor de Geração de Renda e Agregação de Valor do MDA, Arnoldo de Campos. Ele reclama que do jeito que a lei está hoje ela é hipócrita, pois o produto com inspeção e licença local só pode ser vendido no município ou no Estado, impedindo que o produtor amplie seu mercado potencial e, consequentemente, sua renda. “Se o produto fosse ruim, não deveria ser vendido em nenhum lugar.”

É o caso dos queijeiros de Minas Gerais. De acordo com o IMA, o Estado tem 30.185 produtores de queijo artesanal, que elaboram, em média, de cinco a oito queijos por dia – mas apenas 330 estabelecimentos são registrados. E, mesmo assim, eles só podem vender dentro dos limites do Estado. Fora de Minas, o queijo meia cura, que segue uma receita tradicional das regiões da Serra da Canastra, Serro, Araxá, Cerrados e Vertentes, produzido com leite cru, não pode ser vendido. Isso porque o código de 1952 diz que todo queijo produzido no Brasil deve ser de leite pasteurizado.

“O mercado quer um produto diferenciado, feito de forma artesanal, mas a lei não permite”, reclama o diretor do MDA. Ao mesmo tempo que esses queijos mineiros não podem ser vendidos nos supermercados de São Paulo, por exemplo, um similar francês consegue entrar sem problemas no Brasil, já que a lei aceita a certificação de um instituto equivalente na França. Há importados que podem custar acima de R$ 300 o quilo. “A legislação atual é baseada em infraestrutura das instalações”, afirma Campos. “Nós reivindicamos uma legislação baseada em boas práticas. O mercado está aí.”

Na contramão: Arnoldo de Campos, do MDA, diz que a lei é inimiga da formalização da agricultura familiar

O MDA e o Ministério da Agricultura vêm conversando há tempos sobre a alteração do Reiispoa, sigla para Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal, mas até agora a única promessa do Mapa foi acelerar a análise dos pedidos de equivalência entre as legislações federal e estaduais. “As regras de equivalência são extremamente rígidas e difíceis de serem cumpridas”, diz Hartung. Uma das poucas exceções à proibição de venda de produtos artesanais fora do Estado de origem são as feiras – como o Salão de Turismo, em São Paulo.

Um dos produtores que aproveitaram a oportunidade é Jovanildo Neto da Silva, presidente da Associação de Desenvolvimento Sustentável e Solidário da Região Sisaleira, em Valente, na Bahia. Um dos municípios mais áridos do sertão nordestino, Valente tem duas cadeias produtivas, de sisal e de leite de cabra, que é transformado em iogurte, queijo e doce de leite. Como não possuem registro no SIF, os produtores só podem vender dentro do Estado.

A associação é formada por 60 produtores que processam 3,5 mil litros de leite por dia, mas até agora conseguiram mercado para apenas 800 litros de leite transformados em produtos. “Por não vender fora da Bahia, a gente deixa de fazer negócio, perde muito dinheiro”, diz Neto da Silva. A situação é a mesma para o fluminense Gilmar Carino, proprietário da fazenda Boa Fé, na região serrana do Rio de Janeiro, e presidente da Associação dos Produtores Agroindustriais do Estado.

Para agregar valor à produção de 250 litros de leite por dia, ele produz de 30 a 40 queijos curados e temperados. Prestes a entrar no programa “clube do produtor”, da rede de hipermercados Walmart, ele lamenta a limitação de vender apenas no território do Estado. Com isso, Carino acaba reduzindo não apenas a quantidade de queijos que poderia ser colocada no varejo, mas também sua margem de lucro, já que concorre com outros produtores locais.