Dá para cravar: ninguém aguenta mais a quarentena. Quem pode fazer isolamento social já tem quase quatro meses praticamente olhando para as paredes. Para enfrentar essa maratona que não tem fita de chegada à vista, muita gente está flexibilizando seu confinamento e encontrando outras pessoas que também estão isoladas. Cada um na sua bolha, mas em contato para não “surtar”.

A razão disso é o peso mental do isolamento. Quanto mais rigorosa a quarentena, maior o custo para o bem-estar psicológico, dizem os especialistas. A psicóloga Mary Yoko Okamoto, professora de pós-graduação na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e uma das responsáveis pelo programa de teleacolhimento dos calouros, diz que insegurança, incerteza e medo do futuro são os sentimentos mais comuns deste período.

O psicanalista Christian Dunker afirma que nossa capacidade de suportar privações é finita. “Não somos de aço inoxidável ou de elástico. Nós estamos pagando um preço psíquico pelo isolamento. O contato com o outro representa o nosso reconhecimento. Dependemos do outro para entender melhor o que sentimos”, explica o professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).

Ampliar a bolha individual aumenta o contato social, contribui com o equilíbrio emocional e tenta minimizar o risco de transmissão da doença. Se ocorrer uma infecção, ela permanece na bolha e não será transmitida a outras pessoas. Pode ser uma saída temporária à espera da vacina ou de um remédio eficaz contra a covid-19.

No caso da pedagoga Claudia Ribeiro, de 46 anos, a medida deu certo. A educadora mora em São Sebastião, litoral norte de São Paulo, ao lado do marido, Marcos Ribeiro, de 56 anos, e do filho Renan, de 26. O marido é diabético e o filho tem uma deficiência intelectual com lisencefalia (má formação cerebral), o que exige cuidados respiratórios, pois os pulmões dele são frágeis.

Os dois têm, portanto, maior vulnerabilidade à covid-19. No início de julho, eles decidiram correr um risco calculado para diminuir a solidão. A missão era encontrar a amiga Elisangela, que teve alta depois de uma internação por trombose.

Na chegada à casa em Boraceia, também litoral norte, trocaram de roupa e de sapatos. As portas tinham panos ensopados de água sanitária. Usaram máscaras, luvas, spray de álcool 70 para lavar as louças e lavaram as mãos a toda hora. Não trocaram abraços nem beijos. No mês de abril, ela havia adotado os mesmos cuidados para encontrar a mãe, Iraildes Meira, de 63 anos, em Águas de Lindoia, no interior paulista. Valeu, diz a pedagoga. “O calor humano nos confortou e alegrou nossos corações. Estávamos tristes e esquecidos no mundo. Após o encontro, nós nos sentimos mentalmente vivos”, diz a especialista em educação especial.

Na escolha entre o lado racional – o isolamento é a única ferramenta eficaz contra a contaminação – e o afetivo – a saudade dos filhos e netos – , o engenheiro civil Michel Lutfi, de 66 anos, e a assistente social Maria Beatriz Lutfi, de 62, também pegaram um pouquinho de cada. Foram três meses sem contato com os netos Arthur e Diogo, de 7 e 4 anos. A angústia aumentou quando a filha, Renata, teve a covid-19 seguida de uma pneumonia. A solidão pesava de todos os lados.

Após uma consulta de rotina com o cardiologista da família, surgiu a pergunta: com todos os cuidados, nós podemos reencontrá-los? O médico disse “sim”, mas com uma condição: nada de beijos e abraços.

Foi assim que a família começou a se encontrar toda semana desde o início de julho. As bolhas se uniram e ficaram mais felizes. “É difícil, mas a gente respeita o distanciamento. A gente brinca na varanda e também com jogos de mesa. Foi uma decisão acertada, que fez bem para todo mundo”, conta a avó.

Essas cenas exemplificam uma nova forma de afeto, opina a psiquiatra Lívia Basseres. “As relações humanas não vão voltar a ser como antes. A gente precisa se cuidar para evitar a contaminação e também da saúde mental, que costuma ser minimizada. As videoconferências são importantes e os encontros, quando acontecem, têm de ser muito valorizados. É uma oportunidade também de refletir sobre os afetos e as relações”, diz a especialista do Instituto de Psiquiatria da USP (IPQ-FMUSP).

Como montar sua bolha

Essas soluções individuais não são invenção nossa. Foi lá fora que surgiram os termos “bolhas” e “microbolhas sociais”. Quando começou a retomar a vida social após um enfrentamento bemsucedido da pandemia, a Nova Zelândia recomendou que as pessoas continuassem dentro da bolha de suas casas, mas que começassem a expandi-la para se reconectar com a vida lá fora. Na Inglaterra, o governo britânico recomendou que as bolhas sociais, geralmente familiares, fizessem combinações com dois ou três outros grupos.

Não dá para comparar a situação da Nova Zelândia e do Reino Unido com a do Brasil, mas a ideia é a mesma. A decisão de encontrar alguém pessoalmente é delicada, pois a pandemia ainda não acabou por aqui. A retomada de atividades não essenciais em várias cidades, como a abertura de shoppings e academias, por exemplo, traz uma sensação de fim da pandemia. É falsa. Não acabou.

Existem situações mais complexas para criar bolhas, além dos laços familiares, como amigos que dividem o apartamento, por exemplo. Como controlar que todos se protejam na mesma medida se os laços não são tão fortes?

A advogada Beatriz Rossi, de 26 anos, e o analista de Relações Internacionais Vinícius Cipelli, de 25 anos, têm de pensar sobre essa questão toda semana.

Junto há dois anos, o casal restringiu o namoro aos sábados e domingos. Ela pega o carro em Santo André, na região metropolitana, e só para na garagem do prédio em Pinheiros. Os dois trabalham em regime home office. O casal alinha esse rigor de prevenção com o amigo com quem Cipelli divide o apartamento e normalmente leva a namorada.

“Quando alguém chega, a gente pergunta se lavou as mãos e usou álcool em gel, mas só isso. O controle é da consciência e do bom senso de cada um. A gente já se conhece e sabe que dá para confiar”, diz a advogada.

Dunker concorda com esse pacto de confiança. “É uma aplicação particular da regra de quarentena e análise de risco. Isso envolve negociação e um pacto de confiança. Não dá para saber se o outro está respeitando, é preciso equalizar os conceitos de quarentena. Às vezes, é necessário investigar a vida de cada um e entrar na intimidade do outro, coisas que não gostamos muito de fazer”, diz o professor do Instituto de Psicologia da USP.

Para contornar o problema, os encontros entre amigos do publicitário e escritor Airton Bovo, de 59 anos, têm um traço em comum: todo mundo fez o teste de covid-19. Não é uma obrigatoriedade, mas uma prática que se tornou comum no grupo. Trata-se de uma solução particular em um País com baixa testagem e que não conhece ao certo o número de infectados. “É uma segurança para todo mundo”, justifica.

Participam dos encontros quatro pessoas por vez em locais abertos, ao ar livre, como chácaras e sítios, ou em Moema, na zona sul da cidade, onde vive boa parte do grupo. A cada semana, o encontro reúne pessoas diferentes para ampliar as experiências.

“Não somos de aço inoxidável ou de elástico. Nós estamos pagando um preço psíquico pelo isolamento. O contato com o outro representa o nosso reconhecimento.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.