A cabeleireira Ângela Silva, de 59 anos, conta que, quando o expediente acaba, não consegue tomar banho, lavar a louça ou cozinhar. Moradora de Jabaquara, bairro da zona sul de São Paulo, ela reside no mesmo imóvel em que opera seu salão de beleza e diz conviver com a falta de abastecimento, problema que costuma começar por volta das 20h e se estende até a manhã.

Ângela não está sozinha. Moradores de diversas regiões da capital relatam ver as torneiras secas no fim do dia. Dados obtidos pelo Estadão via Lei de Acesso à Informação apontam que a Companhia de Saneamento Básico do Estado (Sabesp) teve no primeiro trimestre deste ano o maior número de reclamações ligadas ao abastecimento de água desde a crise hídrica atravessada pela Grande São Paulo entre 2014 e 2016.

Ao todo, a Sabesp foi alvo de 129 queixas direcionadas à Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado (Arsesp) entre janeiro e março deste ano, o maior número desde o 1º trimestre de 2015.

Nos quatro primeiros meses daquele ano, o sistema Cantareira, principal responsável por abastecer a capital e a região metropolitana, supriu a demanda da capital recorrendo à “reserva técnica” do reservatório, que só pode ser utilizada “em situações excepcionais, mediante expressa autorização dos órgãos gestores” por definição.

Desde aquela crise hídrica, a Sabesp passou a reduzir a pressão na sua rede de tubulação, como forma de evitar desperdícios na rede. No ano passado, a própria empresa admitiu que começou a adotar a manobra mais cedo: começava por volta das 23h e foi adiantado para cerca de 21h. As chuvas do último verão elevaram o volume dos reservatórios, mas o Sistema Cantareira, que abastece a Grande São Paulo, tem o menor nível desde 2016 para esta época do ano. Nesta terça-feira, 10, está com 43,5% da capacidade.

“Não fico um dia sem falta de água. Agora, até quando temos, a pressão da água está baixa, não é mais como antes”, conta Ângela, que chegou a instalar uma caixa d’água em casa, mas o fornecimento não dá pressão nem quantidade suficientes para que possa, por exemplo, enxaguar o cabelo das clientes com água aquecida. “É algo que me atrapalha muito e dá muitos problemas, principalmente quando acaba durante o dia.”

Segundo a empresa, a estratégia de reduzir a pressão é implementada desde os anos 1990 – costuma ter efeitos piores para quem vive na periferia ou em áreas mais altas da cidade. Em nota, a Sabesp diz que os “imóveis com caixa d’água obrigatória e reservação para ao menos 24 horas não sentem os efeitos de manutenções ou da gestão da pressão”.

Clientes que têm os reservatórios, no entanto, acumulam queixas. Nos últimos meses, a deputada federal Tábata Amaral (PSB-SP) enviou uma série de ofícios à Sabesp questionando se há redução de pressão em pelo menos 75 bairros da capital. Em resposta, a companhia afirma que “os locais apontados nos ofícios recebidos foram analisados, confirmando-se abastecimento regular” e que “em regiões de áreas informais, a existência de ligações irregulares prejudica a vazão de água disponibilizada a imóveis regulares”.

A 16 quilômetros da casa de Ângela, Ademilson Cadari, de 47 anos, convive com a falta de água na Vila Celeste, zona norte. Lá, ele conta que desde que se mudou, há dois anos, “aprendeu” à força a viver sem água pelo menos duas noites por semana. Segundo ele, a seca na área, por volta das 19h, mesmo horário em que costuma chegar do trabalho em uma empresa de vendas.

“Não tem periodicidade nem dia certo. Infelizmente, também não tem aviso prévio para podermos nos preparar”, conta. Como a caixa d’água não está ligada diretamente ao chuveiro, Ademilson explica que já se acostumou a tomar banho esquentando a água no fogão e se enxaguando com canecas, à medida em que os “imprevistos” se tornam cada vez mais frequentes.

Mesmo quem tenta reclamar com a Sabesp acaba muitas vezes sem resposta. No portal Reclame Aqui, uma das principais queixas é a falta de agilidade no atendimento da empresa e de transparência nos processos de interrupção do fornecimento de água. “Eles não chamam de corte, mas sim de redução de pressão. Só que, na prática, ficamos sem água praticamente todas as noites”, explica a cantora Bianca Rodrigues, de 44 anos.

Morando em uma casa na Rua Tupi, em Santa Cecília, na região central, Bianca conta que precisou adaptar todo o sistema de distribuição de água da casa e ligar todas as torneiras e canos à caixa d’água. Ainda assim, o reservatório não é suficiente para suprir a demanda de 20h às 5h e a troca de um sistema por outro causa prejuízos adicionais.

“Acontece direto de começar o banho com água da rua, ela acabar, e isso queimar a resistência do chuveiro elétrico. Já tivemos de trocar a resistência três vezes, porque precisamos adaptar as duas torneiras: uma ligada na caixa d’água e outra na da rua”, conta. “Ou às vezes nem conseguimos tomar banho porque usamos a caixa d’água para lavar louça ou cozinhar. Precisamos de organização à tarde para não ficar sem água à noite.”

Bianca, assim como Ângela e Ademilson, também nunca foi formalmente avisada de que, mesmo pagando suas contas em dia, estava concordando em não ter água durante a noite. Principalmente de que não seria notificada quando houvesse interrupção do serviço.

Washington Alan, de 45 anos, mora no Grajaú, na zona sul. Segundo ele, a redução de pressão leva à perda de água. “(Ocorre o problema) quando há restabelecimento (do serviço) por volta das 4h30. É quando a água empurra com muita pressão trazendo ar da tubulação e fazendo o hidrômetro girar por alguns minutos. Depois, a própria pressão da água sobrecarrega a tubulação interna e, há um ano, provocou vazamento no imóvel”, conta, relatando prejuízo de R$ 2,5 mil.”

Em setembro de 2021, o superintendente da Metropolitana Centro da Sabesp, Roberval Tavares de Souza, disse que a prática de reduzir a pressão da água serve para “preservar os sistemas de abastecimento de água” e, mesmo em meio à escassez hídrica, negou que houvesse risco de desabastecimento. Hoje, o nível do Cantareira é de 43,6%.

A Sabesp acrescentou ainda que esse sistema de “redução da pressão” no abastecimento é adotado internacionalmente e indicado pela Comissão Europeia. A empresa também disse que visitou todos os endereços citados na reportagem, mas “não se constatou problemas de abastecimento”.

“Reduzir a vazão a ponto de ter gente sem água é outra história. A Sabesp é maior que qualquer concessionária na Europa”, critica o geólogo Carlos Eduardo Giampá, membro do Conselho Estadual de Recursos Hídricos e da Câmara Técnica de Águas Subterrâneas.

Apesar de realmente ajudar a conter o desperdício de água, a redução da pressão no período noturno se mostra mais eficiente em outros países. Na maior parte da Europa, citada como exemplo pela própria Sabesp, estima-se que aproximadamente 9% da água disponibilizada é “perdida” ao longo da rede. No Brasil, relatório elaborado pelo Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS) no ano passado com dados de 2019 apontou que esse índice pode chegar a 74% em algumas regiões e, em São Paulo, costuma variar em torno dos 40%.

Um dos problemas que contribui para esse desperdício na cidade é a falta de conservação e manutenção na rede de distribuição da água. Na Europa, a maioria dos países se programa para reparar de 2% a 3% do sistema por ano, evitando assim que haja desperdício por furos ou rachaduras. Em Israel, esse índice é de 5%, o que garante uma renovação total em 20 anos. Já no Brasil, a taxa é inferior a 1%.

“No Brasil, só substitui-se a rede de abastecimento quando aparece o vazamento mesmo. Isso acontece quando não tem mais jeito”, explica Antônio Carlos Zuffo, professor de Hidrologia e Gestão de Recursos Hídricos da Unicamp. “Infelizmente, não afeta só a periferia, onde a água acaba antes de chegar, mas todos os pontos altos também ficam desabastecidos com esse sistema”, aponta sobre a política de “redução” noturna.

Zuffo também diz que a caixa d’água dificilmente é uma saída considerada ecológica ou segura por países desenvolvidos, uma vez que a facilidade de contaminação da água é maior. “Mas a nossa situação aqui no Brasil ainda requer esses perrengues. Isso precisa ser pensado no futuro com a redução das perdas.”