“Domingo é o Dia das Mães, e a minha não estará aqui. Meu Deus! Meu Deus!”, lamenta, em meio às lágrimas, Gérson Marques, de 44 anos. Sentado no porta-malas do carro, ao lado de sua irmã e de outros dois parentes, o fiscal de loja aguardava em frente ao Centro de Perícias Científicas Renato Chaves (CPCRC) a liberação do corpo da mãe.

Com o crescente número de mortes causadas pelo novo coronavírus no Estado, o sistema funerário de Belém está à beira do colapso. Dezenas de famílias chegam a aguardar por mais de um dia a liberação dos corpos de parentes no Centro de Perícias. Em frente, tendas foram montadas para amenizar a espera e abrigar os parentes da chuva e do sol.

Para acondicionar os cadáveres, foram colocados um caminhão frigorífico e dois contêineres na parte de trás do necrotério.

Os cemitérios não comportam mais a demanda de corpos e covas estão sendo abertas em terrenos afastados do centro. Nas funerárias, faltam de caixões.

A situação obrigou o governo do Estado a reforçar o número de profissionais do Serviço de Verificação de Óbito (SVO), da Secretaria de Saúde do Pará (Sespa).

A mãe de Gérson, Ana Maria Marques Sousa, de 65 anos, estava há semana na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital Abelardo Santos, no distrito de Icoaraci, na capital paraense. “Primeiro ela estava em casa, com febre, dor no corpo. Depois começou a ter falta de ar e a levamos ao hospital. Lá, ficou internada, e saiu morta”, lembra o filho. Toda a família que mora no bairro da Condor, em Belém, passou dias doente, mas a última a apresentar sintomas foi a matriarca. “Ficamos como se estivéssemos com uma gripe, e logo depois foi ela. Tinha diabetes e não resistiu”.

Mesmo com todos os sintomas da covid-19, ninguém da casa fez exames, nem mesmo Ana Maria, que estava internada em um hospital de portas-abertas para o tratamento da doença no Estado. “Ela passou direto à ala vermelha. Ficou rapidamente muito mal, não conseguia respirar. Nos últimos dias, estava desfalecida e disseram que havia uma suspeita de AVC”, afirma Gérson.

Apesar do possível diagnóstico de Acidente Vascular Cerebral, no atestado de óbito, a causa-morte de Ana foi “Síndrome Respiratória Aguda Grave, a esclarecer”. “Ela morreu da covid e todos sabemos disso. A vizinhança pegou a doença, nós pegamos em casa, nosso vizinho também morreu esses dias. Todos com os mesmos sintomas, menos as crianças”, conta.

Além da dor de perder a mãe, Gérson teve de lidar com a espera, a angústia e a impotência. Ana Maria morreu na quinta-feira, 7, às 8h45. O corpo estava para ser liberado às 8h30 desta sexta-feira, 8, mas, ao chegar ao necrotério, encontrou a demora. “Já passa das 10h, e nada. Vamos levar o corpo para a cidade de São João da Ponta. Ela era de lá. Estamos indo direto ao cemitério, não vai ter velório, não vamos nos despedir”, emociona-se. O município, localizado no nordeste paraense, fica distante cerca de 2h30 da capital. “O mais triste de tudo é que a população não quer que ela seja enterrada lá. Eu entendo, todos estão com medo. Vamos enterrar e voltar pra casa. Ninguém vai nos receber”.

Enquanto Gérson conversava com o jornal O Estado de S. Paulo, o irmão dele, Eduardo Marques, foi reconhecer o corpo da mãe. Depois de quase duas horas, ele volta até a família revoltado. “Perderam a chave do contêiner que guarda os corpos. Ficaram procurando, nem o diretor do IML sabia onde tinham colocado”, reclama Eduardo. “Chamaram um chaveiro e ele não conseguiu abrir. O funcionário de uma funerária pegou um ferro do pessoal que está trabalhando em uma obra e arrombou a porta”, denuncia.

A reportagem procurou o Governo do Pará para falar sobre a demora na liberação de corpos, mas não obteve retorno.

Espera

Sentada em uma cadeira debaixo de uma das tendas montadas no Centro de Perícia, Raquel Iara, de 21 anos, estava inconsolável. Com o chapéu do pai em mãos, ela não aceitava que ele tinha morrido. “Não dá para acreditar. Ele não, por favor, ele não”, repetia. O pai, Luiz Raimundo dos Santos Jamacaru, de 71, veio a óbito na última quarta-feira, às 22h. Mas a família só teve conhecimento da morte na tarde seguinte, quando o genro, Clayton Malcher, de 30, foi visitá-lo.

“Meu sogro foi transferido para o Hangar (Hospital de Campanha da covid-19) naquela noite. Poucas horas depois, ele morreu. Ele foi na ambulância conversando. Como não pode ficar acompanhante, voltamos para casa, e, na hora da visita, a moça me disse que ele estava morto”, lembra. Desde a notícia, a família teve de conviver com a espera e a angústia. “Já estamos bastante tempo esperando por ele. O enterro deveria ter sido anteontem (quinta-feira, 7), já que ele morreu na quarta (6), e, até agora, às 10h30 (desta sexta-feira), o corpo não foi liberado”.

Diferente de Ana Maria, o funcionário público testou positivo para o novo coronavírus. Luiz recebeu assistência médica pelo hospital dos servidores da Prefeitura de Belém, mas, com a piora repentina do quadro de saúde, ele entrou para as estatísticas que apontam mais de 78 mortes confirmadas no Estado.

Ao telefone com outra filha, a costureira Alessandra Jamacaru, de 47 anos, estava inconformada. Após a conversa, ela disse: “Eu sou esposa dele. Está sendo desesperador. A situação é real, gente! Não é brincadeira. Que fatalidade, que fatalidade… Essa doença vai destruindo o ser humano muito rápido e acaba com tudo”.

Protesto

Luiz Raimundo foi mais uma vítima da covid-19 enterrado no Parque de Nazaré, sem velório e com caixão totalmente lacrado. O local foi comprado em abril pela Prefeitura de Belém, após a falta de covas no Cemitério do Tapanã, que fica na mesma região. Com medo de contaminação no lençol freático e nos poços artesianos na área, a comunidade, nessa quinta-feira, 7, fez uma manifestação.

Os moradores pedem que os enterros parem de ser feitos no terreno, e prometem denunciar a situação à Justiça. O autônomo Diemes Sousa, morador do loteamento Açaí, relata o medo. “Não para de chegar caixão. Em um dia, contamos 30. Os carros da funerária fazem fila para entrar, mesmo sendo rápido o sepultamento. Temos medo de contaminar os mananciais da região; tem igarapé e muito poço”, diz. A área é afastada cerca de 50 minutos do centro de Belém.

A Prefeitura garante que o cemitério Parque Nazaré, no bairro do Tapanã, já funcionava com o devido licenciamento ambiental, e é considerado ambientalmente dentro dos padrões, sem oferecer riscos para a população local.

Em nota, a gestão municipal informou que, “no Cemitério Parque Tapanã estavam sendo realizados de 20 a 25 sepultamentos por dia, dentre casos suspeitos, confirmados e outras causas. A média, antes da pandemia, era de 7 a 9 sepultamentos diários. Desde a última quinta-feira, 30, os sepultamentos desse cemitério passaram a ser direcionados para Cemitério particular Parque Nazaré, onde prefeitura adquiriu 312 novas sepulturas. No dia 4, foram realizados 29 sepultamentos no novo cemitério, sendo dois de casos suspeitos e dois de casos oficialmente confirmados”, diz o texto.

Sobrecarga no sistema funerário

O aumento da demanda às funerárias de Belém está sobrecarregando profissionais. Há 17 anos, Roberto Silva, de 49, trabalha na Funerária Jatobá, localizada em frente ao Instituto Médico Legal (IML), no bairro de Benguí, em Belém. Ele relata que nunca viu nada parecido em todo o tempo que atua no segmento. “Quase todos os dias, agora, com essa pandemia, fazemos 10 sepultamentos. É muito anormal”, afirma.

Diariamente, a funerária, que fica próxima ao Centro de Perícias, realizava entre um e dois enterros. “Tinha dia que não vendíamos nenhum caixão. O estoque acabou, e tivemos de mandar fazer. Zerou tudo. Agora que chegou. Isso porque somos uma funerária pequena. As grandes estão vendendo até mais de 20 por dia. Somando tudo, é muita gente morrendo”, lamenta Roberto.

Covid-19 no Pará

O Pará registrou 78 novos óbitos por covid-19 apenas nesta quinta-feira, 7, quando começou a valer o lockdown – bloqueio total – em dez municípios paraenses. Até o boletim mais recente da Secretaria de Saúde (Sespa), desta sexta-feira, 8, o total de mortes era de 515. Casos confirmados somavam 6.141.

Ao longo de quinta-feira, foram divulgados dois boletins: um às 12h50, com 28 óbitos; e outro por volta das 20h48, com mais 50. Do total, 71 mortes foram em municípios que estão em lockdown: Belém (51), Ananindeua (9), Breves (6), Castanhal (3), Santa Izabel do Pará (1) e Vigia de Nazaré (1).

Lockdown

Na quinta-feira, 7, primeiro dia de lockdown no Pará, o Estado registrou a 3ª posição no ranking nacional de isolamento social, alcançando o índice de 49,03% de pessoas em casa. O dado coloca o estado paraense atrás do Rio de Janeiro (49,19%) e do Maranhão (49,3%). O número foi computado na quinta-feira, 7, e ainda permanece abaixo do recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que estabelece a taxa de 70% para que a medida seja efetiva no enfrentamento ao novo coronavírus.

Os dados foram divulgados nesta sexta-feira, 8, pela Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social (Segup), por meio da Secretaria Adjunta de Inteligência e Análise Criminal (Siac).

O secretário de Segurança Pública e Defesa Social, Ualame Machado, avaliou os números. “Nesses primeiros dias, que compreendem o fim de semana, estaremos atuando na fase pedagógica de orientação à população sobre como funcionará o bloqueio. Podemos perceber que, mesmo diante da nossa atuação e da implantação do novo regime, alcançamos o 3º lugar no ranking nacional de isolamento. Porém, o porcentual não é muito animador, tendo em vista que atingimos a faixa de 49% de isolamento social quando o recomendado é de 70%”, reconhece.