Além de conhecer como poucos as dores e os amores da evolução do agronegócio brasileiro, Roberto Rodrigues costuma ter a medida certa para debater esses extremos e o que está entre eles. Exatamente por isso se tornou um porta-voz do setor em várias frentes, inclusive no Ministério da Agricultura (2003-2006). Além de uma família de agricultores, os Rodrigues são também esalquianos já estão na quarta geração de engenheiros agrônomos formados pela Esalq/USP, de Piracicaba (SP). Hoje à frente da coordenação do Centro de Agronegócio na Escola de Economia de São Paulo, da Fundação Getúlio Vargas (FGV EESP), lidera uma série de discussões sobre o agro e pretende ajustar o foco dessas conversas. “Mais do que defender a agropecuária, quero defender um projeto para alimentos no mundo”, disse ele à RURAL.

Rural — O senhor costuma dizer que a comida ajuda a promover a paz. Como fica a questão da segurança alimentar diante da guerra na Ucrânia?
ROBERTO RODRIGUES –É preciso voltar um pouco para abordar essa questão. Mesmo antes da Covid, houve um cenário preocupante quanto à segurança alimentar em que toda semana morria gente no Mar Mediterrâneo. As pessoas estavam fugindo da África, da Ásia, da Europa Oriental, do Oriente Médio e indo para a Europa Ocidental. Para fazer o quê? Comer. E ter paz. Durante a pandemia, além da tragédia pelo caos da perda de vidas que ela ocasionou, muitos países que não tinham autossuficiência no abastecimento precisaram buscar comida fora para garantir segurança alimentar a suas populações. Só que dadas as circunstâncias climáticas em várias regiões do planeta nos anos de 2019 e 2020, os estoques estavam reduzidos. Então, diante da irrevogável lei de oferta e procura, houve uma brutal inflação de alimentos. Em dólar, produtos como soja, milho e proteína animal dobraram de preço de um ano para o outro nas bolsas de Chicago, Nova York e no resto do mundo.

Como esse quadro impactou o agro?
Produtores do mundo inteiro resolveram plantar mais, em áreas maiores, para aproveitar a onda de bons preços. Isso aumentou o consumo de fertilizantes, defensivos, sementes, maquinário e a necessidade de mais crédito. Só que as fábricas de fertilizantes não estavam prontas para aumentar 20% sua produção, Não é assim que funciona, da noite para o dia. Por outro lado, a pandemia também tinha rompido as cadeias produtivas, levando à escassez de insumos e de matéria-prima para produzir. Alguns países produtores de insumos, caso atípico da China, cortaram as exportações preocupados com o suprimento interno dos seus produtores. Então a oferta de insumos também diminuiu e a demanda aumentou, de novo a lei da oferta e procura se fez presente e os preços explodiram.Os ataques da Rússia sobre a Ucrânia potencializaram o problema. A Ucrânia é um dos maiores fornecedores de trigo e milho para a Europa, ocupando a posição de quarto maior exportador mundial de milho, ficando atrás dos Estados Unidos, Brasil e Argentina. A própria Rússia é grande fornecedora de trigo também para a Europa. Portanto, a extensão dessa guerra afeta dramaticamente a oferta de grãos para os países europeus e isso gera mais inflação nos alimentos em dois pontos fundamentais: trigo para consumo humano e milho para ração animal, portanto há o risco de perda de proteína animal.

A situação é ainda pior no caso dos fertilizantes?
Nessa questão, surgiu um horizonte de nuvens escuras no aumento dos preços e da escassez do produto. A Rússia também é um grande exportador de fertilizantes, é o segundo maior produtor de potássio para o mundo, exporta bastante nitrogênio e também produz ureia. Com os embargos que sofreu, há o risco de faltar matéria-prima na Europa, além de complicações logísticas de acesso a seus portos. E o Brasil se prejudica com esse processo todo, pois importa 95% do que consome internamente, sendo que 20% vêm da Bielorrússia. Ou seja, antes da guerra e até independentemente da pandemia, já estávamos com redução de oferta.

Como o Brasil está passando por essa fase?
O País tem uma agricultura moderna e sustentável, é muito empreendedor e usou a melhor tecnologia possível nos últimos 20 ou 30 anos. Isso resultou nessa explosão de crescimento da produção e da exportação de produtos agropecuários. Também temos um agricultor competente, eficiente, competitivo, rigoroso. Como resultado, temos uma terra boa, bem cultivada, bem preparada. Portanto, ainda que a safra disponha de menos fertilizantes, até por conta dos altos preços, não teremos um desastre na produção. Estou há mais de cinco décadas trabalhando na agricultura, então já passei por isso em anos anteriores, quando precisei reduzir adubação.

Quais são as consequências dessa prática?
Estamos falando de um cenário de escassez efetiva de fertilizante a um preço muito alto, o que levaria à redução da adubação. Essa diminuição gera duas consequências: menor faturamento para os produtores, mas também menor custo. Vamos ter uma redução de produção, portanto de renda, mas não me parece que seja uma coisa dramática para o produtor rural. O drama está no fato de que ao plantarmos com menos tecnologia, podemos reduzir a produção. O drama da inflação de alimentos no mundo não tem a ver conosco, mas podemos aumentá-lo ao participarmos de um processo que é difícil de solucionar. No ano que vem, seja lá quem estiver no governo, terá de fazer uma ginástica em ações sociais para alimentar a população. Esse é o reflexo para o Brasil.

O aumento da produção própria não seria uma saída?
O Plano Nacional de Fertilizantes surgiu com esse objetivo de reduzir a dependência externa dos insumos. A comissão do governo que lançou esse plano fez um bom trabalho.

Como chegamos a essa dependência tão grande da importação de fertilizantes?
Até os anos 1970, o Brasil tinha uma agricultura costeira, porque ali estava a terra boa e o também o consumo. As capitais eram costeiras, por isso não havia necessidade de se afastar da costa e, por isso, não precisávamos de tantos fertilizantes. Aí aconteceu uma coisa extraordinária: a ciência tomou o Cerrado. O governo federal tinha uma visão estratégica de ocupar o vazio territorial e desenvolveu programas para facilitar a compra de terras no Centro-Oeste, o que levou à maior onda migratória da história do planeta. Começou com os gaúchos, depois catarinenses, paranaenses, paulistas, mineiros, nordestinos. Esse povo transformou o Cerrado degradado, pobre e ácido em um Maracanã. E precisava de adubo. Então foram importando, importando, importando e a dependência foi crescendo, porque quanto pior a terra mais adubo é necessário para uma boa produtividade.

Em algum momento houve preocupação com o futuro?
Quando fui ministro da Agricultura, e depois com o [Reinhold] Stephanes, houve a tentativa de montar um plano de fertilizantes, mas com o país liberal você compra o que precisa e exporta o que está sobrando. Era um processo que estava dando certo, comprando adubo e produzindo comida. Até que aconteceu esse conjunto de fatores com embargos à Bielorrússia, a pandemia e agora a guerra que mostrou uma fragilidade. Esse negócio tem duas demandas fundamentais. A primeira é realmente ter um plano, como esse lançado pelo governo, que não acaba com a dependência, mas em 20 anos reduzirá de 85% para 50%.

O senhor comentou que o próximo governo pode ter muito trabalho para alimentar a população. Quais são as perspectivas nesse sentido?
Eu estou preocupado porque nenhum candidato apresentou algum programa até agora. É só acusação, debate, mas programa de governo não tem. Por isso sugiro que todo o setor agro, inclusive a mídia especializada, mude o foco do debate e do discurso. Eu não quero defender a agropecuária, eu não quero fazer um projeto para a agricultura ou a pecuária, quero fazer um projeto para alimentos no mundo, fortalecendo o Brasil como um grande player. A guerra potencializa a questão da segurança alimentar que a pandemia trouxe. Então eu penso que devemos colocar a posição do País perante a comunidade internacional, não como fornecedor de produtos agrícolas mas de alimentos, incluindo a questão urbana e também a questão rural. É uma coisa só, uma unidade. O alimento é o ponto de encontro entre o rural e o urbano, é a base de tudo.

O senhor sempre defendeu esse diálogo equilibrado entre o rural e o urbano. Como anda essa conexão?
O campo e o urbano são duas partes do mesmo corpo, são indissolúveis. Por isso não entendo como a gente não consegue romper esta separação entre os dois no Brasil. Uma segregação que nem deveria existir. Por exemplo, no caso dessa marcha heroica para o Cerrado que comentei, o agro contribuiu para a construção do País, mas não foi sozinho, teve a participação das cidades.