O agrônomo Fernando Homem de Melo diz que o Brasil fez a sua revolução no campo e pode superar os americanos na soja, mas não irá abastecer o mundo com etanol de cana

Há mais de três décadas, o agrônomo Fernando Homem de Melo é professor na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo. Especialista em economia agrícola, mestre e doutor, é um dos nomes mais lembrados da USP, para palestras em todo o País.

A fala mansa e o jeito calmo não escondem a alma inquieta, como um escolar nos primeiros anos de estudo. Em entrevista exclusiva à DINHEIRO RURAL , ele fala sobre os desafios do Brasil, para equilibrar o câmbio e a produtividade no campo.

DINHEIRO RURAL – O que mudou no Brasil, com o status de celeiro do mundo?

FERNANDO HOMEM DE MELO – A principal transformação ocorrida no campo para a conquista desse status foi a criação da Embrapa, em 1973. Em pesquisas agropecuárias, ela herdou a estrutura e o capital humano do antigo Departamento Nacional de Pesquisas Agropecuárias, que era um órgão engessado. A Embrapa sempre foi mais flexível. E produziu muito. Por outro lado, do ponto de vista econômico, o produtor se profissionalizou. Hoje, você tem um agricultor mais jovem atuando no campo. São os filhos dos fazendeiros, que estudaram economia, administração ou agronomia. Estão preparados e atentos à evolução tecnológica, com acesso às informações de mercado, fechando contratos de exportação no mercado futuro. Isso era impensável há 20 anos. A soma desses dois elementos ajudou a transformar o agronegócio brasileiro.

DINHEIRO RURAL – Qual é o melhor exemplo dessa combinação entre tecnologia e profissionalização?

MELO – O exemplo mais ilustrativo é a expansão da soja, cultura importada dos Estados Unidos. Os pesquisadores trouxeram sementes para o Rio Grande do Sul, para a estação experimental de Passo Fundo, e aí começou a revolução. A atual safra de soja, de mais de 23 milhões de hectares plantados, é uma coisa extraordinária. Mas o efeito Embrapa veio com a estação de Londrina (PR). Os pesquisadores fizeram uma verdadeira revolução tecnológica com a criação da soja tropical, que é a soja do Cerrado, plantada em Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, na área do Mapito (Maranhão, Piauí e Tocantins), e na Bahia. Fizeram isso de modo extremamente competitivo em relação ao que realiza o maior produtor, que são os Estados Unidos. Mas não vai demorar muito para o Brasil superá-los.

DINHEIRO RURAL – E o que o Brasil ainda precisa fazer para ultrapassar os americanos?

MELO – Nós temos toda a área do Cerrado para ocupar. Temos, também, de acertar os novos caminhos para escoar a produção de grãos. O Brasil tem a saída Norte, que é a dinheiro rural/082-agosto-2011 25 do porto de São Luís (MA). Tem a Bahia, escoando pela ferrovia Oeste-Leste, que liga Barreiras a Ilhéus, e a BR 163, que é uma solução controvertida, mas está lá. Sem contar a ferrovia Norte-Sul, que vem desde o tempo do presidente José Sarney e está caminhando. Tudo isso impulsiona uma outra revolução na produção de soja, que é a expansão do cultivo para o Norte do País. A atual produção tem de ser escoada pelos portos de Santos (SP) ou de Paranaguá (PR).

” A produção de biodiesel favorece o Brasil no cenário mundial”

DINHEIRO RURAL – Ainda assim, a maior parte da produção é transportada via rodovia, uma modalidade cara.

MELO – Há problemas estruturais que encarecem os grãos produzidos no País. No caso da soja, basta olhar a cotação em Sorriso (MT), e em Cascavel (PR), ambas escoadas via porto de Paranaguá. A diferença na cotação varia, aproximadamente, entre R$ 5 e R$ 6 por saca de soja, basicamente em função do custo do transporte rodoviário. Isso, sem contar as perdas ao longo do caminho. Além de Cascavel ser mais próxima de Paranaguá, as estradas são melhores. O produtor de Mato Grosso sobrevive com altos custos, a despeito da visão da população urbana de que aqueles que produzem no Cerrado são predadores da natureza. Eu acho que eles são heróis.

DINHEIRO RURAL – O etanol pode ser considerado um caso à parte no agronegócio do País?

MELO – A cana é um caso especial. O etanol começou a ganhar espaço nos anos de 1970, com a crise do petróleo e do açúcar. O Proálcool ganhou espaço no governo do general Ernesto Geisel, entre 1974 e 1979, mas teve problemas. Houve um período de glória; depois, decadência. O programa desandou e todo mundo voltou para a gasolina. A salvação foi a genial criação do carro flex, que acabou com a incerteza de comprar um veículo apenas movido a álcool.

DINHEIRO RURAL – Esse etanol, de fato, pode se tornar o combustível do mundo?

MELO – Não sou otimista. A produtividade agrícola da cana-de-açúcar cresceu muito pouco, comparada com as outras culturas. E temos um problema de competitividade. Um aluno meu levantou os dados do etanol produzido em Ribeirão Preto (SP), sem os impostos, e a gasolina produzida em Houston, nos Estados Unidos, também sem impostos, e fez uma análise dos custos de exportação. Isso, em 2007, no período pré-crise. O etanol brasileiro, mesmo sem impostos, não era competitivo com a gasolina de lá. O mundo está investindo pesadamente nos combustíveis de segunda e terceira geração, feitos de outros produtos que não a cana. A demanda do mundo é grande e a capacidade de produção brasileira é relativamente pequena. Não acho que o Brasil vá abastecer o mundo com etanol.

DINHEIRO RURAL – Mas o Brasil foi o precursor do álcool à base de cana.

MELO – Sim, isso é indiscutível. Há um elemento muito interessante, mundo afora, que é a conscientização da população sobre o valor do meio ambiente e da utilização de energias limpas. Os europeus são muito preocupados com isso. Eles sempre valorizaram a agricultura familiar e o que ocorre no campo. De dez anos para cá, a população se conscientizou do valor do meio ambiente limpo e passou a pressionar os governos. Depois do exemplo do etanol brasileiro, a Europa toda está entrando no biodiesel, não só com a soja importada, mas com outras oleaginosas.

DINHEIRO RURAL – Quais os impactos dessas mudanças?

MELO – Houve uma mudança no panorama mundial. Recentemente, vi uma notícia de que o preço do milho no programa de álcool dos EUA está entre 15% e 20% acima do que estaria, se não fosse a produção de biodiesel. Isso favorece o Brasil. No médio e longo prazos, os preços vão permanecer firmes, e um dos motivos são os programas de biocombustíveis no mundo.

“Os produtores de Mato Grosso sobrevivem com o estigma de predadores. Acho que são heróis”

DINHEIRO RURAL – Esses preços mais altos não prejudicam os usuários de biocombustíveis?

MELO – Os valores mudaram no mundo todo. As pessoas querem ar limpo e não se importam em pagar mais caro por um combustível que contribua para isso. E isso, aos poucos, vai acontecer no Brasil.

O padrão de crescimento econômico mudou na última década. Há pouco tempo, o mundo desenvolvido era a locomotiva do crescimento. Mas, de dez anos para cá – começando pela China -, o crescimento econômico dos países emergentes é substancialmente maior do que o das economias desenvolvidas. Eles são a locomotiva do mundo agora.

DINHEIRO RURAL – O que isso representa para a economia do Brasil?

MELO – O primeiro é o efeito renda. O quanto as pessoas compram a mais de alimentos, com mais renda no bolso. As classes médias dos países emergentes crescem, que é o que está ocorrendo no Brasil, com as classes C e D. Elas mudam hábitos de consumo, deixam o arroz, o feijão e a farinha e passam a consumir carnes, leite e legumes. Quando os hábitos de consumo mudam, é necessário maior volume de grãos na forma indireta, como ração, do que se fossem consumidos diretamente.

DINHEIRO RURAL – Na prática, quanto a mais de grãos é necessário?

MELO – Para se ter ideia, no caso da pecuária em confinamento, é preciso sete vezes mais grãos para alimentar esses animais que vão alimentar as pessoas do que se os grãos fossem consumidos em sua forma natural. Imagine jogar isso no mercado, além do efeito renda, mais o preço dos grãos e dos biocombustíveis. Não é à toa que os preços dispararam.

DINHEIRO RURAL – Como o câmbio valorizado influencia esse cenário?

MELO – Os preços deverão baixar, mas não voltarão aos patamares anteriores. O câmbio apreciado, como está agora, diminuiu o custo de produção, de fertilizantes e de defensivos. É bom para o produtor rural, mas péssimo para a indústria, que precisa exportar. É por isso que já se fala em um processo de desindustrialização do Brasil. Nesse cenário, uma parte da indústria, menos competitiva, vai abandonar o mercado. Acho que nos próximos cinco a dez anos, teremos uma mudança estrutural na economia brasileira. Teremos uma indústria no agronegócio muito competente, gerando mais empregos.