Em Mato Grosso do Sul, pecuaristas, governo e indústria querem tirar a produção leiteira local da condição de patinho feio do agronegócio do Centro-Oeste. A ordenha de 540 milhões de litros por ano tem potencial para ser três vezes maior. Saiba quem são os atores dessa cadeia em ebulição

Todos os dias, 400 vacas da raça jersey produzem 3,5 mil litros de leite na Agropecuária Missões, localizada em Dourados, um dos mais importantes municípios de Mato Grosso do Sul. Em vez do branco absoluto, o leite ordenhado tem cor amarelada por causa da alta concentração de betacaroteno, mesma substância que dá cor à cenoura e ao mamão. Ela é um sinal da altíssima qualidade do produto, em termos de gordura e proteína. Do total produzido, 2,8 mil litros são processados em um laticínio moderno e funcional, dentro da fazenda, e leva como marca o nome Leite Missões.

E claro, não poderia ter outro destino que não fosse a venda como leite tipo A, a um consumidor interessado em aroma, sabor e a saudabilidade dos produtos frescos e in natura. Oferecido nas gôndolas da rede americana de hipermercados Walmart e da catarinense Comper, em lojas do próprio município e também na capital Campo Grande, o leite Missões é o único em Mato Grosso do Sul nesse sistema de produção. Tornou-se, por isso, uma referência para outros produtores. Em agosto do ano passado, Lineu Pasqualotto, 50 anos, dono da Agropecuária Missões, abriu pela primeira vez a porteira da fazenda para um dia de campo e recebeu a visita de 400 pecuaristas e técnicos interessados em conhecer a qualidade do gado e o laticínio. “O leite é nobre para a saúde, possui qualidades não encontradas em outros alimentos e a pesquisa tem vindo com novas descobertas, provando os seus benefícios”, diz Pasqualotto.


Máquinas especializadas: na Agropecuária Missões, 400 vacas da raça jersey, em lactação, produzem 3,5 mil litros de leite por dia, a maior parte vendido com tipo A

“Como negócio, tem tudo para dar certo, mas não está fácil. O leite é o setor produtivo que mais sofre com as oscilações da economia em crise, como tem acontecido mais fortemente desde julho do ano passado.” Pasqualotto decidiu investir no produto em 2009, destinando à atividade parte de sua fazenda de produção de grãos e de gado de corte. Por isso, tem acompanhado esse cenário com lupa. Além de produtor, hoje ele é também um dos integrantes da Câmara Setorial do Leite em Mato Grosso do Sul, órgão que reúne governo, instituições de pesquisa, produtores e indústria. “Na cadeia produtiva leiteira, o que nós mais precisamos é de produto de qualidade”, diz Pasqualotto. “O Mato Grosso do Sul ficou ilhado nesse mercado, por falta de investimentos, tem baixa produção por vaca, leite com pouca gordura e proteína. Mas, creio que é possível reverter o quadro.”
A produção leiteira no Estado foi de cerca de 540 milhões de litros em 2015, ocupando a 13ª posição no País. O rebanho de 711 mil vacas produz uma média de dois litros por dia, menos da metade da média brasileira, que é de 5,5 litros, de acordo com a consultoria Informa Economics FNP. A baixa produtividade vem do rebanho com animais de raças não especializadas, como a girolanda e jersey, e da dieta pouco nutritiva, muitas vezes baseada em pastagens degradadas. O Valor Bruto da Produção (VBP) leiteira, que é o movimento financeiro da atividade no campo, está estimado entre R$ 600 milhões e R$ 800 milhões, de acordo com Orlando Serrou Camy Filho, coordenador do Programa Leite Forte, uma iniciativa do governo do Estado com órgãos de assistência técnica ao produtor, como Senar e prefeituras. Para se ter uma ideia, o Estado de Minas Gerais, que ocupa o primeiro lugar em produção no País, ordenha 16 vezes mais leite do que os sul-mato-grossenses. São nove bilhões de litros anuais, com VBP estimado de R$ 6,7 bilhões em 2015. “Estamos longe do potencial do Estado, que poderia produzir pelo menos três vezes mais”, diz Camy Filho. “Há muito por fazer em Mato Grosso do Sul, começando pela organização dentro da porteira.” A DINHEIRO RURAL, que procura mostrar as iniciativas de empreendedores do campo – sempre do ponto de vista do negócio financeiramente sustentável –, foi em busca de exemplos que estão fazendo a diferença para mudar o setor leiteiro local. O Mato Grosso do Sul é forte no agronegócio, com um Produto Interno Bruto (PIB) agropecuário de cerca de R$ 15 bilhões obtidos em 2015. Por exemplo, em grãos, é o quinto maior produtor de soja e o terceiro maior de milho, com 16,5 milhões de toneladas cultivadas na safra passada. Na pecuária, com 21 milhões de bovinos, ocupa o quarto lugar entre os maiores rebanhos do País.


“Nós podemos dobrar a produção de leite na fazenda, ir em frente é uma questão de mercado” Lineu Pasqualotto, da Agropecuária Missões

Para colocar a cadeia do leite também em lugar de destaque, cerca de 24 mil produtores que se dedicam a essa atividade precisam fazer algumas lições de casa, promovendo assim saltos de qualidade em suas propriedades. As principais tarefas são melhorar a dieta do gado e o padrão genético animal. Essas duas equações já foram resolvidas na Agropecuária Missões desde que ela foi criada, em 2009. A propriedade chama a atenção pelo foco e planejamento realizados por Pasqualotto. O produtor diz que investiu R$ 2 milhões no projeto leite e que ele já se pagou. “Escolhi verticalizar a cadeia e optei por uma raça especializada, a jersey, porque foi o caminho para remunerar a produção”, afirma. “Eu já tinha os grãos para alimentar os animais, o leite veio para diversificar as atividades da fazenda”. Pasqualotto cultiva mil hectares com grãos, entre soja e milho. Para a pecuária de corte estão reservados 300 hectares, onde cria nelore, e para o leite são 100 hectares para mil animais da raça jersey, contando as vacas em produção, as secas e os bezerros.


Manejo correto: na Estância Santa Helena, as fêmeas recebem reforço na dieta baseada em pasto. As bezerras que nascem na propriedade também são vendidas

O laticínio de Pasqualotto foi construído há dois anos. Além do leite tipo A, ele também produz creme de leite. O projeto, até 2017, é processar todo o leite para o mercado consumidor e iniciar, ainda neste ano, o envasamento em garrafas pet no lugar do saco plástico. “É uma cultura de mercado, não tem a ver com a qualidade”, diz. “Mas, vamos executar porque escala de produção tem tudo a ver com leite.” O esforço para verticalizar o negócio tem uma forte razão econômica. Do total de 1,3 milhão de litros de leite produzidos por ano, Pasqualotto ganha apenas R$ 1 por litro para cerca de 300 mil litros vendidos a laticínios da região, enquanto para o leite tipo A são R$ 2,50. “Nós podemos dobrar a produção de leite na fazenda, ir em frente é uma questão de mercado”, afirma o produtor. Além do leite, como mais um item na diversificação, Pasqualotto começou a vender animais em um leilão que ele pretende realizar a cada dois anos. O primeiro foi em 2014, com 300 fêmeas vendidas; o próximo será em agosto, com 400 animais. “O que não falta é produtor interessado em adquirir genética”, diz ele. “Se não promovesse o leilão teria todo dia alguém na fazenda querendo fazer algum negócio.”

Foi essa percepção de que em Mato Grosso do Sul há demanda por genética que levou o proprietário da Estância Santa Helena, de Campo Grande, Nelson Benedito de Souza, 61 anos, e seu filho Fernando Luiz, 36 anos, médico veterinário, a mudarem o rumo dos negócios. Em vez da venda de leite, o foco da dupla é adquirir animais em bacias leiteiras importantes, especialmente Minas Gerais, e vendê-los em cinco feirões anuais realizados na fazenda. No ano passado, 500 produtores compraram 2,8 mil animais. Nos últimos quatro anos, a Estância Santa Helena vendeu 8,8 mil animais. “Quando começamos, a ideia era comercializar uma média de até 30 fêmeas leiteiras por mês, quantidade que na nossa conta viabilizava o projeto”, diz Nelson.


Produto ideal:o padrão de gado  adequado para  a produção de leite  deve passar pela genética, por exemplo com a raça girolanda, e pelo manejo de pasto, adubando e aplicando calcário

Hoje, a família Souza possui duas propriedades: a mais antiga, de 85 hectares, foi adquirida em 2010, a mais recente, de 95 hectares, foi comprada em outubro do ano passado. Os Souza também alugam mais 100 hectares de pastos para manter um estoque permanente de 200 novilhas em recria. “E vamos em frente”, diz Nelson. A família cultivava grãos no interior paulista até meados dos anos 1980. Foram para o Mato Grosso do Sul viver do arrendamento de terras. “A gente plantava soja e milho, e começamos a criar gado leiteiro para complementar a renda”, afirma Nelson. “Peguei gosto pelo leite quando os vizinhos começaram a se interessar pela compra do nosso gado.” No ano passado, a receita com a venda dos animais foi de R$ 7 milhões, 20% acima do obtido em 2014.


Mais tarefa na fazenda:para o coordenador do programa Leite Forte, Camy Filho,  há muito por fazer em Mato Grosso do Sul, começando pela organização da produção dentro das propriedades rurais

Fernando diz que é um desafio comprar gado leiteiro e prepará-lo para a venda. No início dos negócios, o padrão genético era ter no estoque animais da raça girolando que produzissem 20 litros de leite por dia. “Mas, não é assim que o negócio funciona”, afirma. “Há pecuaristas que querem bezerras, outros pedem por animais de produção alta, mas há aqueles com estrutura de alimentação que não suporta fêmeas que produzem acima de quatro litros diários.” Por isso, a Santa Helena também funciona como uma espécie de consultoria, com preços de animais que podem variar de R$ 2 mil até R$ 10 mil. De acordo com Fernando, há produtores que pedem ajuda para planejar um investimento. “Tem cliente que chega, por exemplo, com R$ 20 mil e quer saber o que é possível fazer”, afirma. “É preciso responsabilidade, entender o que esse produtor possui de estrutura em sua propriedade e orientar de forma correta, porque se não fizermos certo perdemos a confiança depositada em nós.”


Política pública: o secretário de produção, Fernando Lamas, afirma que o governo do Estado colocou a produção leiteira na lista de seus principais gargalos econômicos

PROJETOS  O agrônomo Fernando Lamas, pesquisador da Embrapa Oeste que assumiu a Secretaria de Produção e Agricultura do Estado de Mato Grosso do Sul no início de 2015, diz que o atual governo colocou a produção leiteira na lista de seus principais gargalos econômicos. “O empenho do governo é para mudar o padrão de animais de baixa produção”, afirma Lamas. “Esse padrão não alcança mil litros anuais por vaca.” Uma comparação com o município de Castro, no Paraná, o maior produtor de leite do País, mostra o abismo entre os dois locais: as vacas dessa bacia leiteira produzem 7,1 mil litros por ano, o equivalente a uma média de 20 litros diários, dez vezes acima de Mato Grosso do Sul.

No mês passado, entre as primeiras tarefas de 2016, Lamas se reuniu com gerentes da francesa Lactalis, controlada pela italiana Parmalat, no município de Terenos. O laticínio é o maior do Estado, com capacidade para processar 600 mil litros de leite por dia. Ele foi comprado da BRF no final de 2014, juntamente com outras sete unidades, por R$ 1,8 bilhão. Mas, por escassez e regularidade na oferta de leite, essa unidade da Lactalis trabalha com uma ociosidade de 200 mil litros diários. “Para o Estado é altamente estratégico que o negócio prospere”, diz Lamas. “Uma indústria eficiente promove toda a cadeia produtiva.”

Nos últimos anos, através do Fundo Constitucional de Finan-ciamento do Centro-Oeste (FCO), têm sido aplicados cerca de
R$ 1 bilhão, por ano, em projetos para sustentar a produção. Em geral, os recursos são usados para a compra de matrizes e para a reforma de pastos. Mas, parece que tem sido pouco, principalmente no segundo semestre de 2015, quando os preços do leite foram muito desfavoráveis ao produtor. A cotação, em plena entressafra, ficou abaixo de R$ 1 por litro, que era o preço esperado por eles. “Precisa-mos de mais recursos para sustentar e aumentar a produção, e organizar o parque industrial para processar mais leite e fazer a roda girar”, diz Lamas.


“A educação continuada é fundamental para que a indústria e os produtores troquem informações” Pedro Guerbas, consultor e químico industrial

Além da Lactalis, o Mato Grosso do Sul possui poucos laticínios em atividade, de um total de 14 unidades com inspeção municipal, 37 estadual e 24 federal. Camy Filho diz que a maior parte está fechada e que por isso os produtores ficam sem opção de entrega de leite em suas regiões. E mais: não há mão de obra especializada para a modernização dessas unidades. Pasqualotto, por exemplo, para construir o Laticínio Missões, contou com a consultoria do químico industrial, Pedro Guerbas, que, há 36 anos, lida com o setor leiteiro em Mato Grosso do Sul. Além do projeto da estrutura, Guerbas treinou os dez funcionários especializados na lida com o laticínio, inclusive para atuar no laboratório do controle de qualidade do leite. “A educação continuada é fundamental para que a indústria e os produtores troquem informações”, diz Guerbas. “Quando uma das pontas é deficitária, a outra não anda.”

Para sanar essa deficiência, em 2017 será inaugurado o primeiro Centro de Treinamento e Capacitação Leiteira de Mato Grosso do Sul, em Aquidauana, no campus da Universidade Estadual (UEMS). “O centro vai unir a área educacional com o treinamento, como já ocorre em unidades da Embrapa e de outras instituições em quase todos os Estados”, diz Guerbas, que está envolvido no projeto. “Esse treinamento na UEMS terá o caráter de extensão rural até o produtor.” O centro será um desdobramento dos primeiros cursos de especialização em cadeia leiteira que está começando neste ano na UEMS, instituição que já possui no campus os cursos de zootecnia e agronomia.


“Sem a cooperativa, eles perderiam pelo menos R$ 0,10 por litro, o que é muito para um produto de escala” Ricardo Fávaro, prefeito de itaquiraí (MS)

COOPERADOS  Além disso, para traçar ações de fomento entre os produtores de leite, neste ano também será realizado pelos técnicos do programa Leite Forte, que passará por uma reestruturação e pode até mudar de nome, um diagnóstico da cadeia produtiva de Mato Grosso do Sul, onde serão detalhados o perfil dos produtores, o sistema de criação predominante nas propriedades e a saúde da indústria. Será um trabalho extra do Leite Forte, um programa que conta com 130 técnicos para atender diretamente 3,5 mil produtores, mas que já beneficiou 30 mil através da compra de ordenhadeiras mecânicas, resfriadores de leite e implementos de irrigação. “Mas tudo isso ainda é muito pouco”, diz Camy Filho. “O destino da produção leiteira está na mão de todos os pequenos e médios produtores que devem se organizar e se capacitar para seguir em frente. Essa é a realidade.”

O País deve produzir 37,5 bilhões de litros de leite neste ano e precisa chegar a 51,2 bilhões em 2025, para suprir o consumo interno de 230 litros per capita previsto para esta data. Do total de 5,5 milhões de propriedades rurais, 1,3 milhão, a maioria abaixo de 500 hectares, possui alguma atividade leiteira, mesmo que seja de subsistência. Os especialistas no setor dizem que para ser financeiramente viável, a produção diária de uma propriedade precisa ficar acima de 300 litros. Assim, produzir a partir do modelo de pequenas e médias áreas não é uma prerrogativa de Mato Grosso do Sul, mas do Brasil. Isso não significa, porém, que o setor esteja fadado à insignificância. Na Nova Zelândia, por exemplo, a cooperativa Fonterra, que reúne 10,5 mil pequenos fazendeiros, obteve uma receita de US$ 14 bilhões em 2014. Com 4,6 milhões de vacas, eles respondem por 30% da expotação mundial de lácteos.

Por isso, o que vem ocorrendo no município de Itaquiraí, no extremo sul do Estado, precisa de atenção porque pode ser um modelo a ser seguido. A região possui 12 assentamentos rurais com 3,5 mil famílias de agricultores em propriedades de 7 a 14 hectares. Por causa de investimentos no setor, a produção leiteira no município, que era de 50 mil litros diários há quatro anos, hoje é de 100 mil litros e a expectativa é alcançar 150 mil litros em 2017.

Há dois programas de fomento. Um tem o apoio da Petrobras, que em duas fases – a última começou em 2014 – já aplicou recursos da ordem de R$ 2 milhões para qualificar 600 produtores que, para se organizare, reativaram uma entidade, a Associação dos Produtores de Leite Indaiá (Apline).  No final do ano passado, com o apoio da União Europeia, foi iniciado outro projeto semelhante, para mais 300 produtores. “Queremos chegar a 1,5 mil produtores nos próximos dois anos”, diz Ricardo Fávaro, prefeito do município. Esses novos empreendedores, antes com baixa qualificação profissional, agora utilizam técnicas modernas de manejo, compram gado puro girolando e jersey, e estão inseminando as vacas com sêmen sexado para que nasçam apenas fêmeas, uma ferramenta muito comum nas grandes fazendas produtoras de leite. A reforma de pastos também faz parte da lida, com aplicação de calcário, e capins e gramas mais produtivas estão substituindo os pastos degradados. Em várias propriedades até a irrigação passou a fazer parte dos investimentos. O modelo prevê que, em apenas um hectare, o produtor consiga criar dez animais e produzir 150 litros de leite por dia. “Temos produtores, como o assentado Avarildo Oliveira, que hoje produz 500 litros de leite por dia, com vacas jersey de 28 litros”, afirma Fávaro.

Em 2014, a Apline criou uma cooperativa, a Coplisul, para recolher o leite nas propriedades e realizar a venda conjunta, além da compra de insumos. No ano passado, por causa da união, os produtores venderam o litro do leite por cotações acima de R$ 1, quase todos os meses. “Sem a cooperativa, eles perderiam pelo menos R$ 0,10 por litro, o que é muito para um produto de escala”, diz Fávaro. O próximo passo dos produtores de Itaquiraí será a construção de um laticínio. O projeto está previsto para os próximos três anos.

Colaborou Fábio Moitinho