Mesmo com o País caminhando para a marca de 500 mil mortes em decorrência da pandemia da covid-19, cenas de aglomeração e um certo descaso com os protocolos sanitários podem ser flagrados quase diariamente. Por que muitos se sentem ainda invulneráveis ao vírus? Como podemos explicar esse negacionismo que parece nos rodear? O Estadão conversou a respeito com Daniel Kupermann, psicanalista, professor livre docente do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP).

O Brasil está caminhando para 500 mil vítimas da covid-19. Ainda assim, existe um comportamento de parcela da sociedade que parece reforçar a ideia do “isso nunca vai acontecer comigo”. O que leva a esse tipo de pensamento e comportamento?

Freud (Sigmund Freud, pai da psicanálise) usa essa formulação em um texto em que ele trabalha a figura do herói. Vamos colocar assim: em um filme do 007 ou do Tom Cruise, os personagens principais nunca vão morrer, a gente sabe disso. Nos identificamos narcisicamente com isso. E por que o herói ficcional nos seduz? Exatamente porque queremos acreditar que “nada vai me acontecer” e “somos indestrutíveis”. Essa ideia de que “nada vai me acontecer” faz parte da nossa constituição infantil.

E admitir que somos vulneráveis vai contra essa constituição.

Freud se refere a isso como “idealização”. Nós investimos em objetos que são idealizados. E o primeiro objeto da nossa idealização é o nosso próprio eu. A gente também transporta isso para Deus – com a ideia de que “Deus nos protege”. Essa ilusão implica negação da vulnerabilidade humana, da finitude humana. Trata-se de um paradoxo – já que essa negação é fundamental. Agora, existem graus diferentes de negação.

E quais seriam?

Tem quem não põe o pé na rua, tem gente que vai apenas ao mercado ou à farmácia, tem que pega avião e tem aqueles que vão para o bar. Essa defesa é necessária para viver. Se a gente acordar pensando que vai morrer, a vida vira um inferno. Esse é um processo que faz parte da nossa constituição psíquica normal. Cada um de nós nega a nossa mortalidade para poder viver. Mas, e isso é importante, buscamos, racionalmente, as condutas mais adequadas para nos protegermos, como cuidar da saúde, fazer ginástica, se tratar. Um nível de negacionismo é preciso. O problema é quando isso vira uma política de Estado, quando o negacionismo transforma-se em discurso oficial.

É o nosso estágio no Brasil?

No nosso caso é uma visão de mundo governamental, institucionalizada. Por que é um problema? Porque confunde as pessoas. É como se isso provocasse o incremento do nosso processo de defesa (que não deixa de ser infantil). Ele cria uma ilusão socialmente compartilhada de que nada vai nos acontecer, que não precisamos tomar as medidas sanitárias, que a vida está normal. O negacionismo institucionalizado aumenta o nosso lado infantil e ilusório. A gente começa a duvidar das percepções.

Esse negacionismo pode ser classificado?

O negacionismo ilusório brasileiro tem um elemento de virilidade. Uma ideia de seleção natural, de que o vírus vai poupar os mais fortes e de que a culpa é de quem morre. Esse negacionismo dificulta até o luto. O morto vira o culpado. Ele morreu porque ele é fraco. Esse mito da virilidade ficou escancarado naquele ato de motoqueiros em defesa do presidente. Mas, o que a gente vive no Brasil hoje é uma confusão de línguas. A Ciência diz uma coisa, o presidente diz outra, a religião diz outra… e o cidadão vai ficando confuso. Não existe um consenso baseado naquilo que sustenta nossa sociedade. É o negacionismo institucionalizado que cria essa confusão, que serve para desresponsabilizar os órgãos, as autoridades que deveriam proteger os cidadãos. Se eu não sei a origem do problema, eu não aponto o responsável. Isso é o que a gente está vendo no Brasil. Por isso, o presidente disse que não tem nada a ver com isso, que “as pessoas morrem mesmo ou que todo mundo vai morrer um dia”. O objetivo é causar confusão. E essa confusão é traumática. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.