A pergunta que muitos pais têm escutado de seus filhos pequenos, ultimamente, é uma variação entre ‘Posso assistir?’ e ‘Todo mundo já viu, só eu não. Por quê?’. As perguntas não são novas. São feitas desde sempre por crianças que não entendem a restrição – ou a entendem e querem algo assim mesmo. O que há de novo é o que esses meninos e meninas querem assistir: a série sul-coreana Round 6. Entender os motivos de tanto sucesso – a produção já teve 111 milhões de acessos na Netflix em todo mundo e seu valor estimado é de R$ 5 bilhões – vai além de compreender o desejo das crianças, mas começa precisamente por elas e suas escolas.

A classificação etária da série é 16 anos e o conteúdo chama atenção pela extrema violência. Brincadeiras marcantes da infância de muita gente, como ‘batatinha 1, 2, 3’, ‘cabo de guerra’ e ‘bola de gude’, são usadas, por exemplo, para perpetrar assassinatos. Os participantes são submetidos a provas de sobrevivência na série, e a estética de cores vibrantes nos cenários de Round 6 e o ar inicialmente inofensivo das gincanas são uma combinação que mexe com a memória afetiva infantil de muitos adultos, mas desperta a curiosidade dos pequeninos.

“A sonoridade das brincadeiras, o aspecto lúdico, as imagens infantis, tudo isso tem um apelo grande com o público infantil. E, sendo brincadeiras menos frequentes entre as gerações atuais, desperta a curiosidade de como funcionam, atraindo ainda mais a atenção das crianças. Assuntos como ‘bolinhas de gude’ voltaram a ser tema entre as crianças com quem convivo”, afirma a psicóloga infantil Tauane Gehm, doutora em Psicologia.

Diante do sucesso – e acessos – cada vez maiores, as escolas se movimentaram. No Rio de Janeiro, a Escola Aladdin emitiu comunicado aos pais sobre a ‘obsessão’ dos jovens pela série, com a advertência de que alguns estavam fazendo brincadeiras com alusão ao assassinato de personagens. Em São Paulo, o tradicional colégio Dante Alighieri também se manifestou. “Quando esse assunto começa a vir para cá, a gente precisa repactuar o olhar que família e escola têm juntas. Na época da Baleia Azul, a gente também fez um alerta”, disse ao Estadão a diretora-geral educacional do Dante, Valdenice Cerqueira. A menção à Baleia Azul não aparece por acaso. Também era um jogo aparentemente inocente, que também envolvia uma série de tarefas que seus participantes precisavam cumprir… e que poderia levar à morte real ou virtual.

Em Poços de Caldas, Minas Gerais, a professora de Artes Andréa Ribeiro Campos, do Colégio Dr José Vargas de Souza, percebeu o alvoroço dos alunos em relação a Round 6 e decidiu abordar o assunto em aula. “Eles falavam da série como se fosse legal e natural que as pessoas se matassem por dinheiro. A sensação que tive foi que eles acharam bacana a crueldade dos episódios. Fiquei mais espantada depois que eu mesma vi a série. Senti a necessidade de falar com eles sobre o lado negativo, e da importância de assistir a programas com classificação indicativa para a idade”, diz a professora. Andréa gostou da série. “Achei uma crítica interessante ao capitalismo, mas, para crianças de 11 anos, ela é totalmente inviável devido ao grau de crueldade física e psicológica”, ressalta.

Anticapitalismo

O fenômeno Round 6, para além do fascínio das crianças, deriva do que muitos consideram uma crítica ao capitalismo. E, apesar de as críticas serem à realidade da sociedade coreana, as desigualdades são mais ou menos parecidas por todo o planeta – e foram aumentadas por conta da pandemia. No Brasil, o Índice de Gini, usado para medir a desigualdade de renda, estava em 0,642 no primeiro trimestre de 2020. No fim do ano, estava em 0,669 e no trimestre inicial de 2021 atingiu 0,674 ( o ponto mais alto da série histórica do índice, que oscila entre 0 e 1, no Brasil ). “A tendência crescente de priorizar os benefícios sobre o bem-estar do indivíduo é um fenômeno que vemos nas sociedades capitalistas de todo mundo”, disse à AFP Sharon Yoon, professor de Estudos Coreanos na Universidade Notre-Dame.

“Eu quis escrever uma estória que fosse uma alegoria ou fábula sobre a sociedade capitalista moderna, algo que retratasse uma competição extrema, como a extrema competitividade da vida”, disse o diretor da série, Hwang Dong-hyuk, à revista americana Variety.

Discussões sobre o capitalismo à parte, Luciana de Moraes Cunha Correa toma todo cuidado para proteger a filha de 11 anos que, claro, está louca para ver a série. Ao receber a negativa, a menina retrucou: “Ah, mãe, minhas amigas assistiram. Na minha sala, só eu que ainda não vi”.

O interesse da menina Manoela, aparentemente, não tem a ver com a série em si, mas com a influência que os serviços de streaming e as redes sociais têm sobre todos. Adultos ou crianças. “Eu fiquei interessada porque estava todo mundo falando nisso, estava no ‘top 1’ das séries mais vistas no Brasil. E também porque vi diversos memes no Instagram da ‘batatinha frita 1, 2, 3’, daí fiquei curiosa.”

O sucesso de Round 6 é o mais recente capítulo da escalada do audiovisual sul-coreano mundo. Se a série da Netflix é o seu capítulo mais popular, o mais importante foi Parasita, que venceu o Oscar de melhor filme, diretor, filme estrangeiro, roteiro original, direção de arte e montagem. Todos no ano passado. O principal ponto de intersecção entre as duas produções é a desigualdade social. Se os jogos mortais de Round 6 são vividos por desempregados em busca de um prêmio milionário, em Parasita uma família mostra as amplas desigualdades da sociedade sul-coreana.

“Todos esses prêmios contemplam uma obra que, desde a vitória com a Palma de Ouro em Cannes, no ano passado, tem sido tema de admiração e polêmica. Realizado com precisão absoluta – a ponto de a Academia ter ignorado o portentoso plano-sequência, mesmo que não seja um só, de 1917 -, o filme também segue uma tendência expressa no brasileiro Bacurau, no francês Les Misérables e no norte-americano Coringa – a revolta dos excluídos face às desigualdades do mundo”, escreveu, no Estadão, no ano passado, o crítico de cinema Luiz Carlos Merten.

Com tanta polêmica envolvida, Round 6 já é o maior lançamento de série original da Netflix. Até meados de outubro, foram 111 milhões de acessos em todo o mundo, segundo a plataforma. O valor da série é estimado em US$ 900 milhões, o equivalente a quase R$ 5 bilhões, na cotação atual, de acordo com a Bloomberg News, que cita números de um documento interno da companhia.

De qualquer forma, os lucros do mundo real são incongruentes com as misérias vividas pelos personagens da série, que passam por provas de sobrevivência em busca de dinheiro para pagar suas dívidas. São 456 pessoas desempregadas, em desespero financeiro, para ganhar um prêmio de US$ 38 milhões.

Será que a polêmica voltará para uma nova temporada?

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.