O economista Mansueto Almeida, ex-secretário do Tesouro Nacional e hoje economista-chefe do banco BTG Pactual, domina como poucos o Orçamento do governo e costuma ter os números na ponta da língua. Nesta entrevista ao Estadão/Broadcast, Mansueto, de 54 anos, traça um quadro detalhado da situação fiscal do País e diz que o resultado em 2021 superou, de longe, as previsões feitas pela maioria absoluta de seus pares. “A gente terminou o ano com números muito melhores do que os esperados por qualquer economista, mesmo os mais otimistas”, afirma. Segundo ele, porém, “o mercado está nervoso”, apesar das boas notícias, por causa da possibilidade de haver novos “furos’ no teto de gastos e do discurso de “alguns candidatos” à Presidência contra a medida. Leia a seguir os principais trechos da entrevista.

Nos últimos tempos, muitos analistas têm feito previsões catastróficas sobre a situação fiscal do País. A situação está tão ruim quanto dizem por aí?

Olhando a situação fiscal hoje, a gente terminou 2021 com números muito melhores do que os esperados por qualquer economista, inclusive os mais otimistas, não um ano atrás, mas seis meses atrás. A expectativa no início do ano era de um déficit primário do setor público (receitas menos despesas, sem os juros da dívida), incluindo Estados, municípios, estatais e governo federal, de R$ 250 bilhões. Mas a gente fechou o ano com um superávit primário entre R$ 20 bilhões e R$ 40 bilhões – o primeiro desde 2013 -, equivalente a algo entre 0,2% e 0,3% do PIB (Produto Interno Bruto). Neste ano, isso não deve se repetir. A estimativa é de um déficit primário R$ 76,8 bilhões. Ainda assim, se somarmos o resultado de 2021 com o esperado para 2022, vai dar um déficit muito baixo, de R$ 30/35 bilhões ou 0,8% do PIB. Não é nada. Na crise de 2015/2016, o situação era bem pior. Em 2015, o déficit primário do setor público foi de 1,9% do PIB e em 2016, de 2,5% do PIB.

Se a gente isolar os resultados do governo federal e dos Estados e municípios, como ficam os números?

Os Estados e municípios devem ter terminado 2021 com um superávit na casa dos R$ 100 bilhões, o melhor resultado fiscal desde 1991. As estatais, com superávit de R$ 4 bilhões. O governo federal ainda deve ter fechado o ano com déficit primário de R$ 66 bilhões, mas bem inferior às previsões.

Agora, com a alta da Selic (taxa básica) em 2021, como ficou o déficit total, incluindo os juros da dívida pública?

A Selic terminou 2021 em 9,25% ao ano, mas a taxa média ficou bem abaixo disso. Pelos meus cálculos, o déficit nominal, que é o déficit primário mais a conta de juros, ficou em torno de 5% ou menos do PIB, o equivalente a R$ 410 bilhões, que é um dado bom, também o melhor desde 2013. Então, a gente fechou 2021 melhor do que antes da pandemia, tanto em termos de resultado primário como de resultado nominal. Em 2015, o déficit nominal chegou a 10,2% do PIB e em 2016, a 8,98%.

Só para fechar o capítulo dos dados fiscais, como ficou a dívida pública em 2021? Tinha gente graúda fazendo projeções sinistras, dizendo que iria passar de 100% do PIB.

Nas minhas contas, o Brasil fechou 2021 com uma dívida bruta inferior a 81% do PIB, também muito mais baixa do que se projetava. No caso da dívida líquida, que não inclui empréstimos para bancos públicos e reservas internacionais, o resultado ficou em 56,6% do PIB, só dois pontos acima do de 2019. Neste ano, como os juros subiram muito, ela vai ter um crescimento grande, para 62% do PIB. Vai ser mais ou menos igual à de 2020. Agora, em 2013, quando a gente começou a ter uma piora fiscal grande, a dívida líquida era de 30% do PIB. Então, de 2013 a 2022, um período de nove anos, a dívida líquida duplicou.

Isso acende uma luz amarela para o País?

Não é o fim do mundo. O desafio agora é fazer essa dívida declinar, para numa próxima crise o setor público ter espaço para gastar mais, como todo país do mundo faz. Não vamos nos enganar. Uma dívida bruta de 81% do PIB é muito menor do que a gente esperava, mas para um país emergente como o Brasil é alta. O endividamento médio dos emergentes é de 60% do PIB.

O que explica esse resultado positivo em 2021, que derrubou as previsões dos economistas?

Uma das grandes surpresas foi a velocidade de recuperação da arrecadação. Em 2021, se pensava que seria muito difícil o governo recuperar a arrecadação perdida em 2020. Mas, no fim, a arrecadação do governo central deve ter ficado maior até do que no período pré-pandemia, chegando perto de 18% do PIB. No caso dos Estados, além do ganho com a recuperação da economia, eles foram beneficiados com um ganho de arrecadação forte, em decorrência do aumento de preços de alguns produtos, como energia e combustível.

E do lado da despesa, o que aconteceu?

Com todo o estímulo dado em 2020, a despesa voltou a ser o que era em 2019, antes da covid, para 19,5% do PIB. Nenhum país do mundo conseguiu isso. É mérito do teto, porque todo o ganho de arrecadação do governo, a receita líquida, não virou gasto. Já os Estados foram beneficiados pela contenção de despesas com pessoal, que chegam a 60 ou 70% do total, com o congelamento dos salários dos servidores em 2020 e 2021. Isso representou uma economia brutal.

Por que as previsões deram tão errado? Eles não olham os números?

Olham, sim, mas o pessoal estava com medo de que a situação se deteriorasse. O mercado está nervoso. A mudança do teto de gastos para viabilizar o Auxílio Brasil impactou muito o mercado. Havia uma expectativa de que o governo tivesse um gasto adicional, extrateto, e que ele tentaria justificar isso como uma necessidade da pandemia. A expectativa era de que a coisa seria temporária e não viraria um gasto permanente. O mercado também não esperava que o indexador do teto, que era apurado de julho a junho e agora passou a ser calculado pelo ano “cheio”, fosse mudar. Só que não foi o que aconteceu. Houve ainda a saída dos dois secretários da Fazenda (Bruno Funchal, ex-secretário Especial do Tesouro e Orçamento, e Jeferson Bittencourt, ex-secretário do Tesouro). Quando isso aconteceu, o mercado reagiu muito mal. A Bolsa caiu, curva de juros subiu e o dólar disparou. Essa mudança do teto foi muito tumultuada, mal comunicada. O mercado se assustou não tanto com o tamanho da mudança, mas com os sinais que foram dados.

A que sinais o sr. se refere?

A percepção do mercado foi a seguinte: ‘Se é tão fácil mudar a Constituição quando eles querem aumentar o gasto, o que garante que não vão tentar mudar novamente daqui a um, dois ou três meses?’. Teve ainda a questão dos precatórios, que também foi muito mal encaminhada. O mercado se assusta muito também com o discurso de alguns candidatos contra o teto, sem falar o que vão colocar no lugar. O resultado disso tudo é que a gente terminou 2021 num cenário atípico. Os números são bem melhores do que o mercado esperava, mas a percepção de risco fiscal piorou e machucou bastante os preços dos ativos.

Mesmo considerando todas essas questões, tem uma disparidade enorme entre a narrativa dominante no mercado e a realidade dos números que o sr. apresentou.

Tem. A gente está no seguinte dilema hoje: ou a narrativa vai se aproximar da realidade ou a realidade vai se aproximar da narrativa e a visão de que as coisas estão ficando muito ruins vai se consolidar. A arte da política econômica, além de dados, é também expectativa, comunicação. É mostrar credibilidade. Não adianta falar que a percepção do mercado foi certa ou errada. O fato é que o mercado se assustou e a gente tem de trabalhar com a realidade.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.