Diplomata de carreira com atuação na Delegação Permanente junto às Organizações Internacionais (Genebra) e nas Embaixadas do Brasil em Washington e em Havana, o ministro Alexandre Peña Ghisleni exerce a direção do departamento de Promoção do Agronegócio do Ministério das Relações Exteriores (MRE), desde janeiro de 2019.

Em números, o agronegócio terá meses e anos promissores. O Valor Bruto de Produção deve bater o recorde de R$ 1 trilhão em 2021, impulsionado pela safra recorde de 268 milhões de toneladas de grãos. Para o Ministro Alexandre Peña Ghisleni, os resultados são frutos da consolidação do Brasil como um parceiro confiável internacionalmente. A receita que trouxe o País até aqui pode não dar os mesmos resultados no futuro. O recrudescimento das análises do ESG (ambiental, social e de governança) como fator de risco pelo mercado global é uma ameaça real ao agricultor brasileiro, acusado de ser o grande responsável pelo desmatamento da Amazônia. Com a questão da mudança climática sendo menosprezada pelo presidente Jair Bolsonaro e pelo Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, o produtor que não agir por conta própria pode perder acesso ao crédito e a mercados. Ghisleni, no entanto, garante que o tema é prioridade no governo.

RURAL – A despeito da pandemia, o agro deve fechar um ano-safra excepcional. A que o senhor atribui o bom resultado?
MINISTRO ALEXANDRE PEÑA GHISLENI – Mesmo em contextos de baixo crescimento econômico – como o que estamos vivendo devido à pandemia – a indústria agropecuária se mostrou resiliente, com contribuições positivas para formação da riqueza do País. Considerando que o foco de atuação do MRE é olhar da fronteira do Brasil para fora, dentre nossas principais conquistas foi consolidar o País como parceiro confiável no mercado internacional. Honramos os contratos com garantia de segurança alimentar, quebrando dificuldades como as que se apresentaram em logística e temores de que faltaria alimento.

RURAL – Para 2021, quais serão os desafios?
GHISLENI – São múltiplos. Do ponto de vista do governo, é criar condições para que esse sucesso seja sustentável. Diante da extensão da pandemia, estamos vendo os países compradores recrudescerem as políticas de protecionismo como uma resposta à crise econômica. Outro aspecto, é o surgimento de conceitos de natureza destrutivas, como o da soberania alimentar, que propaga a falsa ideia de que é possível que os países consigam alimentar sua população somente com o que produzem localmente. Nem o Brasil, uma grande potência, consegue fazer isso.

RURAL – O fortalecimento dos critérios ESG como fator de risco no mercado de capitais e a conexão do agronegócio com o desmatamento não entram?
GHISLENI – O uso da ciência no setor é outro dos grandes desafios. Um dos pontos que temos que sublinhar é que a decisão de fechar ou abrir um mercado precisa ser embasada em evidências científicas, e não em temores. Essa é a linguagem comum que garante o diálogo entre os diferentes parceiros internacionais. Existe uma pressão para decisões que em si mesmo são dignas, como criar barreiras para a proteção dos países. A questão é que, se tomadas de maneiras infundadas com relação ao agro, levarão a um sério comprometimento da produção global e, consequentemente, da oferta de alimentos.

“A soja brasileira que vai para a Europa, não é produzida na Amazônia. Ou seja, não há impacto na floresta” (Crédito:Folhapress)

RURAL – Ao citar decisões tomadas com base não científicas, o senhor se refere às acusações do não compromisso do agronegócio nacional com o meio ambiente?
GHISLENI – A questão da ciência se coloca em diferentes frentes. As discussões que temos com diversos países sobre o limite máximo de resíduos é um exemplo. Existe um defensivo comum nas culturas brasileiras, o glifosato, que tem sido muito atacado pelo problema que, de fato, pode causar para os trabalhadores rurais em caso de má utilização. A solução defendida pela União Europeia é a interrupção total do uso do produto. Quais são as alternativas para que os próprios países do bloco consigam manter sua produção com o mesmo nível de produtividade e com o mesmo nível de proteção ambiental do produto que é baixo? Essa é uma discussão concreta com grande impacto, tanto na área ambiental como social e econômica.

RURAL – Com base em ciência ou não, o Brasil vem sofrendo ataques como o do presidente da França, Emmanuel Macron, que criticou a soja brasileira ao associa-lá ao desmatamento da Amazônia. Como o governo está lidando com esses ataques?
GHISLENI – Essa é uma questão de alta prioridade. Preciso, inclusive, fazer uma consideração. O Brasil não é inimigo da União Europeia. Temos longa tradição de bom relacionamento comercial e continuaremos tendo. Como amigos, temos divergências que precisam ser tratadas com seriedade. Sobre o aspecto da sustentabilidade, há um grande esforço do bloco europeu para elevar seus padrões ambientais por meio da criação de novas políticas agrárias. Não há problema algum em mudar e ajustar seu modelo de produção. Se o caminho escolhido por eles para compensar os custos adicionais que o modelo trará aos agricultores europeus for fechar mercado, teremos problemas.

RURAL – O senhor acredita que eles fortalecerão o discurso do desmatamento como barreira não tarifária?
Eles estão batendo forte na tese de que importar commodities do Brasil é importar desmatamento. Vamos pensar setorialmente. A soja brasileira que vai para a União Europeia, não é produzida na Amazônia. O mesmo argumento é usado por eles para a carne bovina. De novo, é falso. Da lista de estabelecimentos habilitados a exportar carne para a Europa, apenas três ficam na área da Amazônia Legal, mas estão localizadas no norte do Mato Grosso. Além disso, todos eles assinaram Termos de Ajustamento de Conduta (TAC) nos quais se comprometem a não utilizar a carne que tenha sido produzida em regiões recentemente desmatadas. Ou seja, punir esses frigoríficos é punir quem fez um compromisso público de não desmatamento. As acusações não fazem sentido.

RURAL – O Brasil, de fato, tem problemas ambientais críticos.
GHISLENI – Temos. Como governo, levamos o assunto muito a sério. O senhor vice-presidente da República, Hamilton Mourão, está envolvido diretamente no tema por meio do Conselho da Amazônia e temos legislações rigorosas. Quando o número de incêndios aumentou, houve uma intensa mobilização do governo, inclusive, com o envolvimento das Forças Armadas.

RURAL – Não foi assim que brasileiros ou mercado internacional perceberam. Qual plano para reverter essa imagem?
GHISLENI – A questão ambiental está sendo usada como sanção ao agro brasileiro, atribuindo ao setor a responsabilidade por incidentes sobre os quais ele não tem ingerência. É uma forma velada de protecionismo comercial. O restabelecimento dos fatos no debate público é essencial para relações comerciais saudáveis.

RURAL – Quando notícias sobre o desmantelamento de órgãos ambientais e sobre a leniência do governo em punir quem promove desmatamento ilegal correm o mundo, o discurso não parece contraditório?
GHISLENI – Como te disse, o envolvimento direto do vice-presidente Hamilton Mourão mostra que é uma questão relevante para o governo. Para uma discussão mais apurada, é necessário desvincular as relações comerciais do agro brasileiro com o problema do desmatamento. É preciso parar com a instrumentalização da questão ambiental para atacar o agro.

RURAL – O fato é que o acordo UE-Mercosul está em cheque. Como mudar a narrativa?
GHISLENI – O documento do acordo traz o capítulo de desenvolvimento sustentável que já foi assinado pela União Europeia. Não vemos razão para uma nova discussão sobre ele. Romper o acordo, significa quebrar um equilíbrio que foi muito difícil de conseguir. Temos certeza de que o que está proposto em termos comerciais e ambientais será benéfico para os dois lados.

“O novo secretário americano da Agricultura, Tom Vilsack, é um profundo conhecedor do agro brasileiro. Há, portanto, boas condições de diálogo entre Brasil e EUA” (Crédito:AP)

RURAL – Outro país que já mostrou que intensificará as exigências de critérios ambientais nas relações de troca, são os Estados Unidos. Quais as expectativas para a relação bilateral?
GHISLENI – No que diz respeito ao agro, teremos que esperar um pouco mais para fazer essa análise, pois não está muito evidente quais serão os direcionamentos adotados. Temos dois pontos importantes. Do ponto de vista estrutural, Brasil e Estados Unidos são competidores no mercado internacional, mas temos muitos interesses em comum como inovação, defesa da ciência, perfil tarifário mais baixo e redução de barreiras comerciais. O interesse americano por esses temas devem se manter, o que permitirá uma fluidez no diálogo entre os dois países.

RURAL – E do ponto de vista político?
GHISLENI – O novo secretário americano da Agricultura, Tom Vilsack, é um profundo conhecedor do agro brasileiro. Há, portanto, boas condições de diálogo entre Brasil e EUA.

RURAL – Como ficará o Brasil com uma possível melhora das relações sino-americanas e com um novo direcionamento do país asiático rumo à economia verde?
GHISLENI – Temos uma relação bilateral com a China muito bem-sucedida, construída por uma grande complementação de interesses. Agora, há aspectos a serem melhorados. Queremos diversificar nossa agenda comercial com eles, agregar valor aos produtos comercializados e ver questões pontuais resolvidas como a suspensão dos frigoríficos por suspeita de contaminação pelo Covid-19. Mas, mesmo no momento em que a China fechava fronteiras devido à pandemia, as vendas do Brasil para lá cresceram.

RURAL – Pelas estimativas da Organização das Nações Unidas, o planeta terá 10 bilhões de pessoas em 2050. Como o Brasil irá se preparar para garantir alimentos a todos?
GHISLENI –Essa é uma questão fundamental, de caráter estratégico, que o Brasil e o mundo precisam ter. O ex-ministro Roberto Rodrigues sempre afirma que agro é paz. No sentido de que, se a segurança alimentar das pessoas está garantida, os líderes das nações conseguem manter a paz social. Onde há fome, não há paz. O Brasil tem condições de ser uma das principais fontes de alimentos do mundo.