A região do Recôncavo Baiano, que compreende a Baía de Todos os Santos, foi berço do samba de roda, da capoeira, do maculelê, do candomblé e de outras manifestações religiosas e folclóricas desde os primeiros anos do Brasil colonial, e tinha como principal atividade econômica a produção do açúcar, pano de fundo de sua formação cultural e social. Para fazer fortuna, os portugueses que lá chegaram, nos primeiros dois séculos da história do País, escolheram as terras férteis de massapé para o cultivo da cana esmagada em seus engenhos. Embora tenha originado centenas de livros, romances, documentos e teses ao longo dos anos, a crônica desse período é tão rica que inspirou o economista e historiador paulista Daniel Strum a dar sua versão dos fatos daquele tempo, agora de uma maneira agradavelmente doce.

Depois de mapear a produção e a comercialização do açúcar entre Amsterdã, na Holanda, e a cidade do Porto, em Portugal, e Pernambuco e Bahia, entre os séculos 16 e 17, Strum apresentou sua obra, um livro de 467 páginas, intitulado O comércio do açúcar: Brasil, Portugal e Países Baixos (1595-1630). O livro, lançado no fim do ano passado, é resultado de um projeto de Strum, que venceu o prêmio Odebrecht de Pesquisa Histórica Clarival do Prado Valladares. “O livro nasceu de minha tese de doutorado em economia”, diz. “Graças à Odebrecht também realizei o sonho de me tornar um historiador.” A obra conta ainda com uma seleção de cerca de 400 imagens, muitas delas publicadas pela primeira vez no Brasil. O autor reuniu fotos de mais de 120 instituições e coleções particulares de 18 países, entre eles, além de Holanda e Portugal, claro: Alemanha, Espanha e Israel.

O livro de Strum é um grato passeio que se faz de olhos bem abertos. Embora a realidade do Recôncavo de hoje em dia seja bem diferente da dos tempos coloniais, o melhor de toda essa história de ascensão e queda do doce império do açúcar da Bahia é conhecer, na companhia do autor do livro, seus engenhos e as peculiaridades da produção de cana-de-açúcar nesse canto do Brasil. DINHEIRO RURAL fez isso: acompanhou Strum em visitas a dois engenhos, mais precisamente ao que sobrou deles. Atualmente, há na região apenas ruínas, assim como nas cidades sobrevivem apenas restos de edificações coloniais. “Tudo o que o açúcar construiu foi praticamente destruído pelo tempo”, diz Lourival Trindade, secretário municipal de Cultura de Cachoeira, município do Recôncavo. “Hoje, temos vestígios raros dessa época”, afirma Trindade. “Por isso, é preciso guardar o que resta dos engenhos mais preservados.”

Um dos engenhos visitados foi o da Freguesia, em Candeias, a 40 quilômetros de Salvador, a capital baiana. Trata-se de uma cidade de topografia irregular, cheia de morros e ladeiras, e um dos primeiros lugares do Brasil a produzir açúcar de cana. Ao longo de sua trajetória, Candeias guardou uma boa parte do que foi a vida dos barões em seus casarões e de seus escravos africanos na indústria e na senzala. Visitar oengenho do século 16 é como viajar no tempo. O Freguesia é formado pela sede ou morada – como era chamada a casa dos barões à época –, com quatro andares, uma capela e 55 cômodos. A cozinha, dotada de coifas e chaminés, é do tipo portuguesa alentejana. Atualmente, esse conjunto arquitetônico está sendo restaurado para abrigar o Museu do Recôncavo Wanderley Pinho, previsto para ser aberto em 2014. Segundo Maria de Fátima Santos, coordenadora do museu, a fachada do Freguesia sofreu algumas intervenções no seu projeto original. “O engenho passou por reformas, nos séculos 18 e 19, porque no século 17 ele foi praticamente destruído pelos holandeses que invadiram a região”, diz Maria de Fátima.

Strum conta em seu livro como foi lenta a transição da mão de obra escrava indígena para a africana. O número potencial de índios no litoral nordestino, passíveis de serem escravizados, foi diminuindo com as guerras, com a migração de alguns grupos e com as doenças trazidas ao Brasil pelos europeus. Assim, conforme o estoque de índios diminuía, seu preço se valorizava. “Os escravos africanos eram ainda mais caros que os índios, mas compensavam porque eles eram mais resistentes a doenças”, diz Strum.

Se em relação aos escravos não há divergências entre os vários autores que já escreveram sobre esse período da história do Brasil, quanto à produção e os preços do açúcar a cena muda. Não há consenso sobre quanto um engenho produzia. Em seus estudos, Strum encontrou documentos que mostram uma produção de 150 mil quilos de açúcar nos grandes engenhos, na então Ilha de Vera Cruz, nome de batismo do Brasil, dado por  Pero Vaz de Caminha. Mas a maioriados engenhos, pequenas propriedades, produzia em média 30 mil quilos de açúcar por ano. Em relação aos preços da época, o historiador diz que, até o início dos anos 1610, eles passavam de mil réis por arroba de açúcar, período em que o Brasil passou a ser o principal fornecedor mundial. “Mas são apenas indícios”, diz Strum. “Não dá para afirmar com toda a certeza.” As formas de negociação do açúcar, no entanto, sempre foram bem claras: à vista, antecipada, a prazo, a termo ou de forma mista. Tudo sob a tutela dos donos de engenho, que já nessa época  aceitavam o pagamento em moeda, em produtos ou títulos. Com exceção desses senhores, os refinadores, boticários, confeiteiros e doceiros tiveram pouca voz na história oficial. Mas, por conta deles, o leitor encontra um espaço lúdico na obra de Strum: os quitutes da época são de dar água na boca.