“Muito obrigada”, disse Temple Grandin à pecuarista Carmen Perez, dona da fazenda Orvalho das Flores, localizada em Araguaiana, município do vale do rio Araguaia, em Mato Grosso. Temple é a maior autoridade global em bem-estar animal e pela primeira vez visitou uma fazenda no Brasil, justamente a de Carmen. “Imagina eu ouvir isso de Temple, quando o agradecimento pela sua presença na fazenda é meu”, diz ela. Mas a atitude de Temple tem um significado. A Orvalho das Flores, com um rebanho de 2,8 mil animais da raça nelore, dos quais 1,5 mil são matrizes, tem passado por um processo revolucionário na criação de bezerros. Há alguns anos, os animais não mais são marcados com ferro a fogo após o nascimento, um manejo que traz sofrimento ao gado e o deixa mais reativo.

“Há riscos econômicos em se ignorar o bem-estar animal” Celso Fucia Leme, da UFRJ (Crédito:Divulgação)

Um estudo da também pesquisadora americana Cassandra Tucker, realizado em 2014, mostra que um animal marcado a fogo pode sentir dor por até oito semanas, tempo para a cicatrização. Em vez disso, os bezerros da Orvalho das Flores recebem massagens pelo corpo, feita por um peão, enquanto outro coloca um brinco de identificação no animal e faz a cura de seu umbigo. Para isso, Carmen não dispõe de mais mão de obra: ela simplesmente apresentou a seus funcionários as teorias de Temple. “Os animais ficam muito mais dóceis, sem estresse”, diz ela. A ciência já mostrou que animais estressados têm o hormônio do crescimento reduzido, perdem peso porque têm menos apetite por comida e resistem menos às doenças. E o mais grave: tornam-se bravios, dificultando o manejo em pastos e confinamentos.

Para o professor Celso Funcia Leme, do Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (Coppead), da Universidade Federal do Rio de Janeiro, hoje, o bem-estar animal tem a ver com risco e oportunidades de negócio para as empresas. “Há riscos econômicos em se ignorar o bem-estar animal”, diz Leme. “O mundo empresarial tem acolhido, cada vez mais, relatórios que correlacionam o bem-estar animal com o seu desempenho financeiro.” Entre esses relatórios estão o Global Reporting Initiative (GRI), o Business Benchmark on Farm Animal Welfare (BBFAW), o Farm Animal Investiment Risk & Return (Fairr) e até o Brazilian Sustainability Índex, criado pela bolsa B3 no início deste ano. De acordo com a Fairr (Iniciativa de Risco e Retorno do Investimento em Animais de Fazenda, na tradução do inglês), entidade com sede em Londres que monitora produtores mundiais de carnes, laticínios e aquicultura, o grupo de 60 empresas em seu relatório possui ativos da ordem de US$ 7,8 trilhões. Entre elas estão nomes como as redes globais de fast food McDonald’s e KFC. “É importante entender a escala desse movimento”, diz Leme. “No caso da B3, mostra o acolhimento pelo mercado de capitais do País e é um movimento sem volta.”

A propriedade de Carmen Perez, que também é presidente do Núcleo Feminino do Agronegócio (NFA), nos últimos anos tem ficado entre as fazendas mais sustentáveis no prêmio AS MELHORES DA DINHEIRO RURAL, em Destaques da Pecuária. O trabalho desenvolvido na Orvalho da Flores é apoiado pelo professor Mateus Paranhos, da Faculdade de Ciências Agrárias e Veterinárias da Unesp, em Jaboticabal (SP), pós-doutorado na universidade de Cambridge, na Inglaterra, e coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Etologia e Ecologia Animal (Grupo Etco). Ele lista alguns fatores que tem impulsionado o bem-estar animal no Brasil, em bovinos de corte, leite, suínos e aves. “O primeiro deles foi e continua sendo a redução de perdas econômicas, com menos mortalidade de animais e perda de carcaças por contusões, entre outros”, diz Paranhos. “Também conta a conquista de novos mercados e a pressão da sociedade através de movimentos sociais”.

Mas a grande mudança, que de acordo com Paranhos já está ocorrendo, é o reconhecimento dos animais como seres sensientes, que podem sofrer fisicamente ou psiquicamente justamente porque possuem um sistema nervoso. “É a responsabilidade de tratar bem. É preciso tratar bem dos animais, das pessoas, do planeta”, diz ele. Paranhos, que é um discípulo de Temple há muitos anos, e que a acompanhou durante toda a sua estada de cinco dias no País, para palestras, encontros com produtores e com autistas – por ser uma militante da causa –, recebeu em público um apertado abraço da amiga. Vale registrar que autistas evitam interação social. “Bem-estar animal é um trabalho que exige qualificação”, diz Temple. “Tecnologias não substituem as pessoas, elas são as peças importantes nesse processo.”

Chico Bento, João Pedro, Temple Grandin e seus laços de união

Embrapa

João Pedro Barbosa, o menino com chapéu de palha, junto ao pai, na foto abaixo, mora na cidade do Rio de Janeiro. O menino é apaixonado por Chico Bento, personagem da Turma da Mônica criado em 1961 pelo cartunista brasileiro, Maurício de Sousa, hoje com 83 anos. Nas histórias contadas nos gibis e nos filmes produzidos, Chico vive no sítio Vila Abobrinha, onde cria carinhosamente muitos animais e adora nadar em um laguinho. No mês passado, o pai, Cristovão Barbosa, funcionário público e sem nenhuma ligação com o agronegócio, enviou uma mensagem à DINHEIRO RURAL que começa assim: “Meu filho João Pedro, de 14 anos, tem uma manifestação da síndrome de espectro autista. Ele adora o Chico Bento e gostaria muito de visitar uma “roça”, tal qual retratada nos gibis…”

Na carta, Barbosa diz que fez uma promessa e pede ajuda à redação da DINHEIRO RURAL para encontrar uma propriedade, na qual o filho pudesse realizar o sonho de um dia no campo. Com mãos à obra, o ciclo se fechou. Neste mês, o menino passa um fim de semana com Filippo Leta, que administra com o pai um sítio de 12 hectares no Recreio dos Bandeirantes, bairro da zona oeste do Rio de Janeiro, onde a praia ainda divide espaço com o campo. “Obrigado por me darem essa oportunidade de receber o João Pedro”, disse Leta.

Cabeças raras: Filippo Leta, produtor rural (na foto à esq.), recebe em sua propriedade João Pedro Barbosa, 14 anos, e seu pai Cristovão. Como gratidão, o menino desenhou um retrato do novo amigo, para presenteá-lo

No sítio herdado do avô, Leta possui um coqueiral integrado com a criação de bovinos, caprinos, suínos e aves, além de forrageiras. Em outros 50 hectares, separado do sítio, ele tem eucalipto. O produtor vende água de coco envasada na propriedade, lenha em fardos, leite de vaca e de cabra com a marca “Ah Pashto”, ovo de galinha caipira que pode ser escolhido até por unidade, além de suínos. Leta é adepto do sistema agrossilvipastoril e integra o projeto chamado “Pecuária Neutra em Metano Entérico”, gás que faz parte do processo natural da digestão de ruminantes e é associado com gases de efeito estufa. E ainda mais: Leta é um fã ardoroso das teorias de Temple Grandin. “Gostaria muito de um dia conhecê-la pessoalmente”, diz ele.

No outro lado da cidade do Rio de Janeiro, enquanto essa edição da DINHEIRO RURAL era fechada e o dia da visita era preparado, João Pedro tentava imaginar o novo amigo Leta, fazendo um retrato do produtor para presenteá-lo. E como nada é por acaso, segue uma outra parte dessa história que reúne Chico Bento, João Pedro e Temple Grandin. Em novembro de 2012, Maurício de Sousa apresentou o projeto Chico Bento Moço. O personagem, na época com 18 anos, escolhia como profissão a engenharia agronômica e ia para a faculdade. Na ocasião, a DINHEIRO RURAL apresentou em primeira mão o projeto, com quadrinhos inéditos feitos exclusivamente para a revista e publicados na edição 97. O primeiro gibi Chico Bento Moço foi para as bancas em agosto de 2013.