Diante de uma grave crise humanitária provocada por fluxos migratórios fortalecidos pela guerra da Rússia contra a Ucrânia, o agronegócio surge como uma alternativa de solução. Isso, se governos e sociedade civil se unirem para tornar o campo novamente atrativo para as populações locais

Das oito gestões desde a criação da Organização Internacional do Café (OIC), esta é quinta vez, sendo a terceira consecutiva, que a liderança é brasileira. Mas é a primeira vez que uma mulher chega ao posto. Vanusia Nogueira assumiu a função em maio, após 13 anos à frente da Associação Brasileira de Cafés Especiais (BSCA, na sigla em inglês). Agora seu desafio é ainda maior: liderar o reequilíbrio da indústria cafeeira, além das negociações que envolvem uma das commodities mais consumidas no mundo.

Rural — Já era um plano assumir a diretoria-executiva da OIC?
VANUSIA — Nunca havia pensado nisso, até fevereiro do ano passado. Minha carreira foi no setor privado. O agro continua sendo razoavelmente machista e quando eu era adolescente, era muito mais. No café também o pessoal é muito conservador. Falei ‘vou ganhar o mundo’. Saí (de Minas Gerais), fiquei 22 anos fora. E a OIC é um organismo intergovernamental, onde os seus líderes até hoje foram pessoas oriundas da administração pública ou da diplomacia. Eu achava que era muito por aí o processo todo deles.

Como surgiu a sua indicação?
Após três décadas contribuindo para o processo de equilíbrio do mercado de café, a OIC viveu uma crise de identidade: começou um questionamento sobre a razão dela existir. Assim, em 2019, a agência para o desenvolvimento do governo alemão e a agência para desenvolvimento do governo da Suíça se propuseram a dar apoio financeiro para a criação de uma força tarefa público-privada para endereçar os principais problemas da cadeia de café. Ali um novo acordo internacional começou a ser escrito. Foi nesse contexto que meu nome foi cogitado no Brasil.

Você disse há pouco que o agro ainda carrega machismo. A OIC tem também suas burocracias, suas formas de proceder. Qual o papel que você leva, enquanto mulher, para esse desafio?
Será um grande desafio. Com certeza, existem países em que há um pouco mais de restrição, mas tem um lado que nós mulheres temos muito claro, de multitarefa, de conseguir abrir diversas frentes e de ir trabalhando o lado mais humano das pessoas. Para este momento de repensar e de inovar, considero que uma mulher na direção será bastante importante para todos os lados.

A senhora já tem itens novos definidos que pretende levar para sua gestão, no que dar continuidade?
Não chega a ser uma questão de eu levar, mas do que está sendo discutido. Os membros já estão amadurecendo a ideia de que a OIC é uma organização intergovernamental, mas que setor nenhum no mundo hoje funciona só entre governos. O terceiro setor e a iniciativa privada têm que estar juntos. Agora, o novo acordo internacional precisa prever como vai ser a efetiva participação desses setores, sem que a OIC perca suas raízes de instituição intergovernamental.

E como está isso?
Em fase final de reestruturação. No momento em que o Conselho definir a forma como vai ser, acredito que caberá muito a mim por tudo isso em prática. Não vai ser fácil. Se só entre governos já há interesses conflitantes, imagine a hora em que envolvermos ONGs, setor privado, indústria, traders e começarmos a montar todo esse processo no qual haverá o momento de competir e o de cooperar e compartilhar.

Tem um rumo, em especial, que está se desenhando dentro desse novo acordo?
Vemos agora essa questão da Ucrânia, em que temos um lado bastante delicado já que a Rússia é membro oficial da OIC. Então, damos apoio nas questões humanitárias, como todo mundo está fazendo, mas sem entrar no mérito. Tem também o contexto África. A Europa não aguenta mais receber refugiados. Estados Unidos idem com pessoas da América Central tentando entrar como imigrante ilegal. A alternativa para isso é a gente conseguir fazer uma vida melhor, mais digna, criando atrativos para que as populações continuem em seus países. Teremos que trabalhar. A indústria do café pode ajudar, mas não só ela. Junto com outras culturas, como a do cacau na África, talvez possamos contribuir com a solução para esse cenário. Outro contexto é que o Brasil é o mais desenvolvido de todos os países produtores de café. Se aqui a gente tem problemas seríssimos de infraestrutura, imagina esses outros países?

Nesse caso, qual é o caminho?
Temos que encontrar o formato em que todo mundo consiga estar junto para mapearmos com eficiência quais são os grandes problemas e qual será o modelo para solucioná-los. É política pública. Depois vem a questão do recurso, que muitas vezes o governo não tem, mas a iniciativa privada tem para apoiar. E um ponto que eu tenho colocado o tempo todo: não sou megalomaníaca, não pretendo encontrar ‘a’ solução de todos os problemas. É um trabalho de pouco em pouco: faz algo aqui, deu certo, sai replicando. É um processo de amadurecimento de todos em conjunto, um exercício para médio e longo prazo. Mas tem que começar.

Esse repensar é realmente muito amplo, com uma forma de parcerias que não se via antes, com ONGs …
A forma como estamos trabalhando na força-tarefa para a redação do próprio acordo já é um ensaio para se chegar ao novo acordo: ela tem que ter igualdade de posições. A cada entidade dessas, a cada membro do setor privado que queira entrar, mais um país membro da OIC tem que se candidatar a entrar também para os trabalhos da força tarefa. Isso para que tenhamos sempre um equilíbrio entre todos os agentes. Esse processo é importante para vermos se vai funcionar com todo mundo junto.

Tem um tempo previsto para chegar ao Novo Acordo?
Talvez em outubro a gente consiga ter a aprovação do acordo entre os delegados. Depois, será necessário que passe pelo parlamento de todos os países para ser ratificado. O acordo em vigor atualmente foi liberado pelos delegados em 2007 e só entrou em vigência oficialmente em 2011. Os delegados estão tentando cercar o máximo possível para que já saia em um formato para que a aprovação nos parlamentos possa ser mais simples.

A expectativa é vê-lo em prática na sua gestão?
Sem dúvida é importantíssimo. Sabemos que as velocidades são muito diferentes entre os setores público e privado, mas se os governos desejam sinalizar que querem a iniciativa privada junto, terão que dar essa demonstração. O setor privado está ansioso. Temos que aproveitar isso para embarcar todo mundo junto. Tenho essa esperança de que vamos conseguir fazer com que as decisões não demorem tanto para serem aprovados, que a gente possa colocar o novo acordo em prática.

A senhora falou sobre conseguir condições melhores de trabalho para as pessoas ficarem nos próprios países. Como?
Queremos que o produtor tenha profissionalismo suficiente, tenha acesso à educação, treinamentos, pesquisa, infraestrutura e, a partir daí, gerar prosperidade para todos eles. Gosto muito da palavra dignidade, mas a palavra que ficou no acordo é prosperidade. Estamos ouvindo a indústria também, pois queremos criar condições para que o crescimento da rentabilidade do agricultor passe também por outras alternativas que não somente reduzir o custo de produção. Mas claro, esse custo não pode ser proibitivo. A solução talvez cause desconforto: muito provavelmente em alguns locais a conclusão será que a saída é a diversificação econômica, que ali não dá para viver só de café. Será preciso incluir outras atividades. Em alguns casos até vamos nos deparar com a possibilidade de ter que tirar o cafezal e plantar outra cultura economicamente mais viável. Não dá para termos a ilusão de que conseguiremos prosperidade na renda para a maioria dos produtores sem que tenham produtividade e eficiência no seu processo.

Nesses cinco anos de mandato, a senhora vislumbra caminhos para expandir o consumo de café?
Aqui no Brasil, ainda temos espaço para aumentar o consumo, principalmente porque a indústria no País está melhorando o nível de qualidade. Neste momento em que vemos algumas pressões no preço, temos que refletir: por que o consumidor continua relacionando café com produto barato? O que podemos fazer para mudar um pouco essa forma de pensar a respeito do café para que ele não seja um produto comprado simplesmente pelo preço. Para essa discussão, temos que trazer para a mesa os varejistas. São eles quem mais entendem de comportamento do consumidor. É preciso fortalecer o diálogo.

Seu mandato é de 5 anos. Pode ser reconduzida para mais 5. A sra. vai em aberto para a possibilidade de ficar até 10 anos?
Acho que 10 anos é tempo suficiente. Foi exatamente quando completei 10 anos de BCSA que falei: tá na hora de mudar. Precisa oxigenar, de ideias novas. Parar aos 70 anos [hoje a executiva tem 60], pois aí estará na hora mesmo.