ÁREAS DE PLANTIO Segundo a Embrapa, há 2,7 milhões de hectares no Cerrado para serem cultivados com trigo (Crédito:Divulgação)

Brasil não vai mais precisar importar trigo. Essa notícia, esperada há tempos por representantes de toda a cadeia produtiva do cereal – e por que não dizer pela população como um todo? – começa a sair do ambiente da expectativa, ou mesmo do desejo. Já não era sem tempo, pois a produção próxima de 8 milhões esperada para este ano nem de perto será suficiente para suprir a demanda interna, em torno de 13 milhões de toneladas. É um déficit de 38,5%. A alteração desse quadro passa pelo desafio de expandir o plantio dessa cultura de clima temperado nos campos do Cerrado – 90% da produção está concentrada na região Sul. É exatamente esta a proposta da parceria entre o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e a Embrapa, que em março deste ano assinaram o Termo de Execução Descentralizada (TED) para implementar o desenvolvimento do trigo tropical. O que essa agenda propõe é impulsionar a atividade e, de fato, transformar a cadeia tritícola.

EFICIÊNCIA Trigo irrigado precisa render mais de 7 toneladas por hectare para ser competitivo (Crédito:Avalon Studio)

O objetivo é transferir e gerar conhecimentos e tecnologias para a cadeia do trigo, contribuindo para expansão da área e aumento da competividade da cultura na região tropical do Brasil Central, por meio de ações capazes de proporcionar maior adesão de produtores ao cultivo do cereal. A pesquisa está voltada para áreas de Cerrado nos estados de Bahia, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais e São Paulo e do Distrito Federal. O plano para o período entre 2022 e 2025, que envolve investimentos de R$ 3 milhões, é promover uma expansão de 100 mil hectares de área plantada com o trigo tropical, produzir 300 mil toneladas e promover um impacto na balança comercial brasileira acima de R$ 450 milhões. A projeção para daqui a uma década, ou menos, é que a produção total do País chegue a 14 milhões de toneladas, trazendo a tão esperada autossuficiência e até a possibilidade de exportação da commodity que é base da alimentação mundial com movimentação de 750 milhões de toneladas/ano.

Com a expansão do trigo no cerrado, em menos de dez anos a produção nacional pode chegar a 14 milhões de toneladas por safra

“O trigo ajuda a melhorar a estrutura do solo e serve como rotação de cultura” Jorge Lemainsk, Embrapa trigo (Crédito:Divulgação)

Segundo o chefe-geral da Embrapa Trigo, Jorge Lemainsk, esse avanço vai dinamizar a economia local, atraindo mais investimentos para a atividade, com a entrada ­— ou a expansão — de empresas de insumos. “Além de ajudar a melhorar a estrutura do solo como alternativa de rotação de cultura, reduzindo o impacto de doenças em culturas como batata, feijão, tomate, ervilha ou soja”, afirmou. Na opinião de Lemainsk, como o trigo entra para compor sistema e a água já é requisitada em outras culturas, o principal avanço deve ser na área de sequeiro, em 75 mil hectares. Enquanto se espera a ampliação de 25 mil hectares de trigo irrigado, que para ser competitivo precisa produzir acima de 7 mil quilos por hectare.

A Embrapa é a instituição responsável pela coordenação dessa empreitada, com a participação das Câmaras Setoriais de Cereais de Inverno e de Cereais, Fibras e Oleaginosas do Mapa. Além de várias entidades que representam segmentos ligados ao setor, das lavouras à indústria, e os próprios agricultores. Um coletivo tão expressivo se justifica pelo número e pela importância das atividades que compõem o projeto do trigo tropical. São oito ações que envolvem desde a organização da produção de sementes até o zoneamento agrícola de risco climático, passando por pesquisa e desenvolvimento, comunicação, governança, entre outros pontos.

Lemainsk reforça que os trabalhos de observação e pesquisa estão avançando também para as regiões Nordeste e Norte. Segundo ele, é nessas fronteiras que estão agora os maiores desafios, como fazer ajustes técnicos, recomendações, adaptação de cultivares para reduzir os riscos e assim criar condições para que o produtor tenha renda. “Com o produtor alcançando boa remuneração, a área de cultivo avança”, disse.

BOM MOMENTO Não é por falta de exemplo que o trigo vai deixar de tomar conta do Cerrado. O agricultor de Cristalina (GO), Paulo Bonato, conseguiu colher 9.630 kg/hectare no ano passado, estabelecendo um recorde mundial de produtividade. “É a terceira vez que eu bato meu próprio recorde”, disse ele à RURAL. Bonato, que já trabalha com a cultura há mais de 20 anos, entre outros tipos de grãos, se diz um pequeno produtor de trigo, pois cultiva entre 100 e 200 hectares por ano, dependendo das condições e do mercado. Sobre a alta performance da lavoura, trata o assunto com muita naturalidade, pois reconhece que tal resultado “é fruto de um trabalho que vem sendo feito ano a ano”. Mas há quem entenda de forma diferente. Não por acaso, o produtor foi entrevistado pelo The Wall Street Journal para falar sobre esse resultado e como o cereal pode transformar o Cerrado.

A Embrapa identificou 2,7 milhões de hectares que podem ser usados para o trigo na região. São terras já ocupadas por diferentes culturas onde o cereal pode entrar como segunda safra. E aí está uma condição muito particular do Brasil que permite apostar em projetos como esse do trigo tropical. O espaço destinado a lavouras temporárias soma 49 milhões de hectares, mas a produção de grãos nessa área corresponde a 72 milhões de hectares, de acordo com a empresa. Esse ganho de 46,9% só acontece pela possibilidade de se fazer três safras por ano na mesma terra, como acontece com o milho e o feijão.
Neste momento, as chances de multiplicação do trigo pelo Cerrado são ainda maiores, pois o mercado está altamente favorável em termos de preços. Muito devido ao conflito entre Rússia e Ucrânia, respectivamente o primeiro e o quarto maiores fornecedores globais do cereal. Segundo Paulo Bonato, os efeitos da guerra potencializaram uma valorização do trigo que já vinha acontecendo. Isso fez com que mais agricultores se interessassem pela cultura e pelo número do celular dele, que passou a receber ligações quase diárias de fazendeiros, consultores e outras pessoas de olho nesse mercado. “Estou em uma região onde produtores que nunca se interessaram, agora procuram pela cultura”, afirmou.

Divulgação

OUTRO LADO Como a moeda tem sempre duas faces, o embate no leste europeu gerou efeito bem diferente para o pessoal dos moinhos. De acordo com a Associação Brasileira da Indústria do Trigo (Abitrigo), russos e ucranianos respondem por 210 milhões de toneladas, volume que deixa de entrar no mercado e joga as cotações para cima. “De fevereiro para cá, a alta foi de 40% nos valores para o mercado global”, afirmou o presidente da entidade, Rubens Barbosa. “Não houve problema no abastecimento, porque não comprávamos nada da Ucrânia e não havia programação de importação da Rússia.” Segundo o dirigente, simplesmente repassar esse aumento seria um caos, pois impactaria no preço dos alimentos e geraria aumento da inflação, por isso a indústria teve de encurtar sua rentabilidade.

Os moinhos ainda têm de concorrer com o setor de alimentação animal, principalmente de aves e suínos, que tem ampliado o consumo de trigo. Por motivos óbvios, a Abitrigo acompanha de perto essa questão da autossuficiência na produção do cereal. Tanto que em 2019 a entidade chegou a apresentar ao governo federal uma proposta de Política Nacional do Trigo, com o intuito de promover o desenvolvimento da cadeia produtiva. Não houve resposta. Sem entrar nos detalhes sobre o episódio, Barbosa afirmou que o mais importante agora é que o País está no caminho certo do aumento de produção. A Abitrigo é uma das entidades integrantes do projeto da Embrapa.

ALIMENTOS Indústria cortou ganhos para reduzir impacto da alta do trigo no preço de pães, biscoitos e outros produtos (Crédito:istockphoto)

NA PRÁTICA O fato de o trigo já ser produzido no Cerrado há décadas também contribui para que mais agricultores se interessem pelo cultivo, pois sobram referências. Faz dez anos, por exemplo, que a própria Embrapa apresentou ao mercado a cultivar BRS 404, de trigo sequeiro, que apresenta alta tolerância a temperaturas elevadas e ao estresse hídrico. Para o trigo irrigado, há as variedades BRS 254, 264 e 394. E o mercado não é exclusivo, há cultivares de trigo tropical também de outras empresas.

Para a autossuficiência se tornar realidade, ainda é preciso superar desafios importantes. Um deles é a geração de renda para o agricultor. Neste momento de preços altos, afirmou Paulo Bonato, os custos de produção acabam sendo diluídos, mas este é um momento atípico. “Para quem utiliza irrigação como eu, as despesas com energia e combustível pesam bastante”. Por isso, afirmou, “durante um tempo os produtores abriram mão do trigo por outras culturas”. Outro produtor de Goiás, Leonardo Ribeiro, está no quinto ano de plantio do trigo em segunda safra e quer chegar ao sexto para validar a viabilidade econômica. “A agronômica já identificamos”, disse.

Expansão do trigo no cerrado passa por desafios como o alto cuto de produção e o controle efetivo da Doença Brusone

Fator de extrema relevância é o desafio sanitário apresentado pela doença fúngica brusone. Segundo Bonato, se o agricultor permitir chegar a um índice de infestação muito alto, pode perder toda a produção. Como medida preventiva, Bonato programa a irrigação de suas lavouras de trigo para o período noturno. Primeiro porque, como os dias são bem quentes a as noites frias, aproveita melhor a água; segundo porque as plantas já estarão úmidas pelo sereno. “Se eu irrigar durante o dia, ficarão molhadas por mais tempo, favorecendo a doença”, afirmou.

DESAFIOS O produtor Leonardo Boaretto reforça a opinião de Bonato sobre a relevância da brusone. “Precisamos de uma variedade extremamente tolerante ou um produto que controle efetivamente a doença”, afirmou. O agricultor está plantando 300 hectares de trigo sequeiro como safrinha e estima manter a mesma produtividade que obteve na safra passada, com 120 sacas por hectare. “Pretendia cultivar 500 hectares, mas a janela de plantio fica reduzida. Plantando muito cedo, a temperatura está muito quente e tem muita umidade, tudo o que a brusone precisa.” Boaretto diz que se retardar o plantio, a falta de chuva reduz a produtividade. Mesmo com os custos de produção mais elevados, aposta em rentabilidade maior, devido à alta nos preços.

“O trigo aumentou 40% no mercado global de fevereiro para cá” Rubens Barbosa Abitrigo (Crédito:Nacho Doce)

A expectativa é que o mercado se equilibre quando passar essa onda de valorização do trigo devido ao conflito no leste europeu. Ao menos na opinião do recordista de produtividade, Paulo Bonato. Segundo o agricultor, que é adepto do sistema de plantio direto, o cultivo do trigo no Cerrado por si só já é vantajoso, pois oferece ganhos agronômicos significativos. “Sempre pensei no trigo como um fator melhorador do solo, pois a palhada é altamente favorável”, disse. Ainda que seja necessário investir em equipamentos específicos, como a plantadeira, pois o espaçamento para semear o trigo é menor, vale a pena. “Quando o produtor consegue colher quantidades mais expressivas do grão, percebe melhor as outras vantagens de plantar trigo.”