O produtor cearense Francisco de Araújo Carneiro transformou sua empresa na maior potência do Nordeste nos setores avícola e leiteiro. Agora, o desafio de seus herdeiros é dar um novo salto num negócio que está faturando R$ 380 milhões neste ano

Até agora, aos 78 anos, o empresário cearense Francisco de Araújo Carneiro, dono da Companhia de Alimentos do Nordeste (Cialne), com sede em Fortaleza, nunca havia tirado férias. As primeiras de sua vida acontecem neste mês de setembro. Há algum tempo, o empresário, que gosta de ser chamado por todos de Dico Carneiro, comprou um apartamento no bairro de Aventura, em Miami, com planos de passar por lá pelo menos 60 dias por ano. Os netos Ludmila, Rafael e Francisco Carneiro Neto, que hoje exercem cargos de direção na empresa, duvidam que o plano das longas férias do avô venha a se concretizar. “Nunca ouvi meu avô ao menos supor a possibilidade de parar de trabalhar”, diz Carneiro Neto, ou Dico Neto, diretorcomercial. Aos 33 anos e há 18 anos ao lado do avô, é ele que vem sendo preparado para assumir a presidência da Cialne. “Talvez meu avô consiga ficar em Miami algumas semanas, mas férias é uma palavra que nunca existiu em seu dicionário”, afirma Ludmila, 34 anos, diretora-administrativa. “Vai ser uma surpresa se ele de fato tirar umas longas férias”, completa Rafael, diretor de operação logística e de pecuária, que também tem 33 anos. No início de agosto, sentado na varanda de uma de suas fazendas, em Umirim, a cerca de 100 quilômetros de Fortaleza, Carneiro insistia em contar detalhes sobre o seu projeto americano à DINHEIRO RURAL. “Estou indo porque quero, vou descansar”, afirmou ele. E, sem tirar os olhos do horizonte, emendou: “Mas às vezes penso que não há motivo pra ficar longe da minha terra, gosto mesmo é de trabalhar e ver a criação cada vez mais bonita”. A Cialne, empresa que Carneiro fundou em 1966, atua em avicultura, pecuária leiteira e ovinocultura. No ano passado a receita foi de R$ 322 milhões, com previsão de faturar neste ano R$ 380 milhões, um crescimento de 18%.

A Cialne é uma das empresas de alimentos mais antigas da capital cearense. Como gosta de afirmar o patriarca, está há 48 anos no mesmo endereço e mantém o mesmo Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ). “Só não tenho o mesmo telefone porque as companhias do setor vêm trocando de número a toda hora”, diz o empresário. Registrada como sociedade anônima, mas sem nenhum acionista investidor e totalmente controlada pela família Carneiro, a empresa é de uma transparência rara no agronegócio. Em geral, empresas familiares não revelam suas receitas e lucros. No caso da Cialne, seus controladores não apenas mostram a saúde financeira do empreendimento, como provam o que dizem. Toda a contabilidade, que segue normas internacionais de gestão, é auditada pela consultoria Ernest Young. “Temos quase meio século de balanços publicados”, afirma Carneiro. Juntamente com o patriarca, funcionando como um conselho que administra a empresa, estão os três netos e Daniela, sua primogênita, na diretoria financeira. “Nunca vi meu pai atrasar o pagamento de uma fatura”, diz Daniela. “Ou o salário de algum funcionário.” A Cialne, que atualmente emprega três mil funcionários, é a maior empresa avícola do Nordeste e está entre as cinco maiores produtoras e leite do País, segundo o ranking dos 100 maiores produtores de leite divulgado todos os anos pela consultoria paulista Milkpoint. É do Mondubim, um bairro no subúrbio da capital cearense que nasceu no rastro da Baturité, histórica  estrada de ferro da região, que a família Carneiro comanda a Cialne. Para quem chega ao local, as instalações simples e sem grandes luxos não chamam a atenção. Mas é desse QGl que saem as  ordens para que funcionem como um relógio, diariamente, as 53 unidades produtivas, entre granjas, fazendas, incubatórios, fábrica de ração e frigorífico, espalhadas pelo interior do Ceará, Piauí, Paraíba e Maranhão. Na região não há concorrente para a Cialne. Em todo o Nordeste, existem cerca de 160 empresas avícolas, a maioria de pequeno porte, sendo que apenas 15 se destacam como de médio porte. 

Na avicultura, somente de ovos férteis a produção da Cialne chega a 132 milhões de unidades por ano. A criação de aves soma 46,8 milhões de unidades e 96 milhões de pintinhos de um dia. No ano passado, o abate de frangos em frigorífico próprio foi de 20 milhões de unidades. Os demais são vendidos ainda vivos para um mercado que ainda é tradição no Nordeste: o de criar os animais nos quintais e pequenas propriedades rurais, ou comprar os frangos já adultos para abatê-los em casa. É o chamado consumo de frango quente. No gado leiteiro são oito mil bovinos girolando e cruzados de holandês, e mais mil animais puros da raça gir leiteiro. Todos os dias, 2,7 mil vacas são ordenhadas. Em 2013, a produção de leite foi de 14,4 milhões de litros e neste ano deve passar de 16 milhões de litros. A atividade menos vistosa da Cialne é a ovinocultura. Com oito mil animais, o abate de cordeiros de até quatro meses de idade rende 2,4 mil toneladas de carne por ano, um colosso quando comparado ao que ocorre no Nordeste. A região possui cerca de 12 milhões de ovinos, segundo dados do IBGE, espalhados na sua quase totalidade por propriedades rurais de até 30 hectares e com rebanhos diminutos.

Teimosia A Cialne nasceu como fruto da teimosia de Carneiro em ter um negócio próprio. Oitavo filho de uma família de 14 irmãos de Quixeramobim,  município do sertão cearense, Carneiro não encontrava espaço para mostrar todo o talento ao pai,  que também era agricultor e chegou a ser um  os maiores produtores de algodão nas décadas de 1940 e 1950, indo do cultivo ao beneficiamento da fibra e ao processamento de óleo. “Meu pai não acreditou que eu sairia de casa para criar galinhas, apenas com um dinheirinho no bolso”, diz Carneiro. A Cialne, como o empresário diz repetidamente, foi uma sorte. “ Eu não entendia nada de galinhas e de ovos, mas o negócio começou a funcionar.” Um ano depois ele já era dono da empresa. “Comprei a parte do meu sócio sem poder, mas me aventurei porque fiz as contas e sabia que com o lucro da venda dos ovos poderia pagar as parcelas de um empréstimo.” No final da década de 1960, Carneiro vendia em um pequeno empório no centro da cidade, e também a outros comerciantes de Fortaleza, os ovos produzidos no quintal de sua casa. Entre essa época e a década de 1990, a Cialne passou de algumas dúzias a 600 mil ovos por mês produzidos em granjas próprias, no interior do Estado – hoje são 11 milhões de ovos por mês. “Trabalhava das seis da manhã às dez da noite”, diz Carneiro. Aos 30 anos de empresa, novamente os negócios levaram o empreendedor a a atacar outro desafio. “Nessa época, cheguei à conclusão de que só produzir ovos não era suficiente, porque significava investir apenas no varejo”, diz o empresário. “Eu precisava me reinventar, apostar em matrizes e ovos férteis, o que significa investir na produção.” Foi assim que Carneiro partiu para a verticalização total da cadeia produtiva, indo das galinhas-avós, que são o berço da genética de todo processo de produção avícola, até o consumidor final para a carne de frango.

A Cialne é uma das poucas empresas do setor que detêm todo o processo avícola, igualando-se ao modelo de empresas como a BRFoods e a Seara. Mas a Cialne possui exclusividades que nem mesmo as gigantes detêm. A mais relevante foi fechada há 15 anos com a Aviagen, do grupo escocês Erich Wesjohann, líder mundial em melhoramento genético de aves e com subsidiárias em 130 países. A Cialne passou a ser um centro de testes de animais adaptados ao clima tropical. “Nós alojamos as aves-avós, que são a base da genética avícola, e ajudamos a pesquisar qual tipo de animal se adapta ao País”, diz Dico Neto. “Hoje, temos exclusividade de distribuição para o Norte e o Nordeste da genética de aves com o gene Naked Neck, por exemplo.” Em inglês, Naked Neck significa pescoço pelado. A linhagem da Aviagen, que foi desenvolvida na Índia, é uma aposta que  pode mudar a produtividade das  granjas da região. Enquanto um frango de linhagem convencional chega a pesar 2,7 quilos aos 42 dias de vida, quando está pronto para o abate, um pescoço pelado que tem até 40% menos de plumagem chega a pesar 3,6 quilos, quase um quilo a mais. “Além de transformar a ração que comem em mais volume de carne, a mortalidade da linhagem pescoço pelado nas granjas é muito menor que a das linhagens convencionais”, diz Dico Neto. “E a carne dessa ave também é mais macia e saborosa.” 

Crescimento Apesar do cuidado com as granjas e com o que produzem, o foco dos herdeiros da Cialne  está no crescimento da empresa em uma área nova: o frigorífico, para abastecer o consumidor de frango industrializado resfriado ou congelado. Em 2010, a Cialne comprou um pequeno frigorífico que abatia seis mil aves por dia, em Teresina, no Piauí, e demoliu suas instalações para levantar em seu lugar uma unidade com capacidade de abater 80 mil aves por dia. Na época, o investimento foi de cerca de R$ 30 milhões. “Estávamos capitalizados e a oportunidade casou bem com nossa política de investimento”, afirma Dico Neto.

De acordo com ele, o ditado popular segundo o qual enquanto alguns choram outros vendem lenço aplica-se à perfeição ao grupo cearense. Desde 2009, a Cialne cresce em ritmo acelerado, por aquisições ou alugando granjas que seriam desativadas em função da crise na  avicultura, principalmente nos últimos três anos. A operação mais recente, em março, envolveu um aviário com capacidade para produzir 130 mil frangos por semana, em Ubajara, município cearense da serra da Ibiapaba. A meio caminho do frigorífico de Teresina, a granja segue uma estratégia de agregar valor à produção. “Precisamos fazer com que o frigorífico trabalhe na sua capacidade máxima”, afirma Gabriela Carneiro, filha de Daniela que hoje dirige o frigorífico. Hoje são abatidos no Piauí 40 mil frangos por dia. “Queremos distribuir aves por todo o Nordeste”, afirma Dico Neto. 

Além de aumentar o abate de frangos, a Cialne começa, ainda neste semestre, a construção de  uma unidade armazenadora de grãos no Piauí. O objetivo é livrarse das importações de grãos, principalmente de milho, da Argentina e dos Estados Unidos, ou mesmo do  Centro-Oeste do País. De acordo com Marcos Viveiros, diretor-executivo da Cialne, a ideia é fazer hedge físico de grãos. “Hoje, os silos serão construídos a uma distância de 70 quilômetros da fronteira agrícola no sul do Piauí, mas daqui a dez anos ela estará na nossa porta”, diz Viveiros. “Concentrar a estocagem vai nos levar a uma redução de custos porque poderemos comprar todos os grãos quando os preços estiverem em seu menor patamar.” Por exemplo, uma saca de 60 quilos de milho importado que custa R$ 20 chega às fábricas de ração da Cialne por R$ 28. Caso a compra seja feita em Mato Grosso, a saca sai por R$ 10 e o frete por R$ 20. Atualmente, a empresa necessita de 190 mil sacas de milho e 100 mil sacas de soja, por mês, além de milheto, sorgo, caroço de algodão e outros subprodutos.

“Todas as grandes empresas de avicultura estão indo para áreas próximas à produção de grãos”, afirma Dico Neto. “Nós já estamos perto dos grãos e do mercado consumidor.” Todas as atividades da empresa se concentram em um raio médio de 600 quilômetros de Fortaleza, com o máximo de mil quilômetros entre o frigorífico e mercados consumidores dos produtos Cialne, como é o caso de Natal e Recife. 

De acordo com Ludmila, o plano é aumentar a produção de frango resfriado e congelado para o mercado do Nordeste, sem abandonar a venda de frangos vivos, atualmente o segmento de onde vem a maior parte do faturamento da empresa. A venda é feita a pequenos abatedouros, que processam as aves e as revendem ainda quentes.

Essa é uma particularidade do Nordeste, principalmente de Pernambuco e Paraíba para cima. “Vamos acompanhar a mudança de hábito da população, mas há  costumes que permanecerão”, afirma Ludmila. “O frango à cabidela só é possível fazer com frango vivo e, por isso, mesmo as classes A e B compram esse tipo de produto.” Embora haja no  Nordeste, de fato, um cenário de migração do frango abatido e consumido quente, que até alguns anos atrás representavam cerca de 70% do consumo, para o frango industrializado, é importante observar que em outros países o mercado de frango vivo é mantido inclusive por multinacionais. No México, por exemplo, metade do consumo é de frango quente e a americana Tyson participa fortemente desse mercado. Outra gigante que participa do mercado mundial de frango vivo é a JBS.

O consumo de produtos mais elaborados tem aumentado na última década, em razão do crescimento populacional, da interiorização regional das redes de varejo, do  aumento da renda da população e de sua melhor distribuição através dos programas sociais do governo federal, como o Bolsa Família. “O frango é a primeira proteína animal a que as populações de baixa renda têm acesso, depois do ovo”, diz Dico Neto. “Então, com todo o crescimento de renda e o acesso acima da  linha da miséria, o frango entrou na dieta das classes D e C.” Para a economista Camila Saito, responsável pelas análises de crescimento regional da consultoria Tendências, de São Paulo, o cenário é positivo para o Nordeste nos próximos anos. “Neste ano, por exemplo, projetamos um crescimento do PIB de 0,6% para o País e de 1,8% para o Nordeste”, diz Camila. Mas, se for considerado apenas o agronenovo gócio, o PIB nordestino crescerá 7,2%. Os números fazem parte de um estudo finalizado por Camila no mês passado, que também analisa o PIB para o período de 2015 a 2019. Para o País, a projeção é de 2,4% e para o Nordeste, de 3,5%.

O Nordeste, com participação de 14% no PIB brasileiro, é responsável por mais de 20% dos investimentos programados para os próximos anos. Segundo Camila, essa é razão pela qual a região deve mostrar crescimentos acima da média nacional e ganhar participação no PIB nos próximos anos. “Nesse período, o aumento do consumo no Nordeste se dará por mudanças estruturais daqui para a frente, pois o impacto de programas sociais será marginal”, diz a economista. “Além do mais, o comprometimento da renda das famílias com dívidas é bem menor no Nordeste em comparação com outras regiões, o que dá margem para a tomada de crédito e para o consumo de produtos de maior valor agregado.”

Leite e cordeiros As análises da economista caem como uma luva nos planos da Cialne para os outros dois setores nos quais atua e onde é preciso agregar valor: o leite e a carne de cordeiro. Segundo o veterinário Péricles Montezuma, que monitora o rebanho nas quatro fazendas produtoras de leite, os investimentos vêm sendo feitos para garantir comida o ano todo para os animais. “Temos um  limitador que é a falta de água para produzir forragem”, diz Montezuma. “Por isso, estamos colocando irrigação com pivô central para aproveitar ao máximo as águas dos açudes.”  Atualmente, a Cialne possui 12 pivôs. O projeto para, no máximo, 2016 é destinar a produção de 40 mil litros de leite por dia, hoje vendida in natura  para laticínios da região, a um laticínio próprio. Os mais entusiasmados com a ideia são Ludmila e Rafael. “Já estamos estudando como criar uma marca própria para vender leite tipo A”, diz Ludmila. “Não existe esse produto no mercado, mas há demanda para ele.” Hoje, os produtos da Cialne, como frango inteiro ou em porções, além de embutidos como mortadela, linguiça, pizzas e massas  produzidos de forma terceirizada, chegam ao mercado com a marca Dudico. “Até pensamos em usar o mesmo nome, mas acho que o leite precisa de um caminho próprio”, afirma Rafael. Para ele, se fosse hoje, o litro do leite tipo A, vendido a uma média de R$ 4,50 ao consumidor final, teria um custo de R$ 1,70 para a Cialne. “É um bom negócio e com o leite aumentamos nossa exposição em gôndolas”, diz. Já para os ovinos, que começaram a ser abatidos em 2011, o raciocínio é o mesmo. “Nosso projeto é apostar no food service a restaurantes, por exemplo, mas também ter na gôndola cortes  de carne.” Na Cialne, os cordeiros abatidos aos quatro meses são animais cruzados da raça santa inês com dorper.

Carneiro, que sempre escutou com atenção os planos dos netos, acredita que as mudanças  geradas pelas novas oportunidades de mercado estão acontecendo muito rapidamente. “Falo para eles que é preciso ir devagar, sem fazer dívidas e sem dar o passo maior que as pernas”, afirma  Carneiro. “Mas o certo é que nós nunca paramos de investir, desde que a Cialne nasceu.” Para uma empresa que cresceu a um ritmo de 17% ao ano entre 2011 e 2014, enquanto o País patinava no 1%, que apresentou um crescimento do Ebtida de 40% ao ano e uma margem  Ebtida que saiu de 9% para estimados 16% neste ano, parece mais fácil planejar o crescimento dos próximos anos. Sem contar que família Carneiro dispõe de um patrimônio imobiliário de cerca de R$ 500 milhões fora do agronegócio, de terrenos ocupados por granjas, no passado, ao redor de Fortaleza, e que foram sendo transferidas para o interior do Estado. “Fiz minha parte, agora é com eles”, diz Carneiro. No entanto, Dico Neto, assim como os demais herdeiros, não abre mão da experiência do avô. “Nós sabemos disso, mas é bom ele estar por perto.”