Gritos, açoites, pancadas e ferroadas ainda fazem parte do método de manejo de muitas fazendas pecuárias no Brasil e lá fora. Mas se depender de pesquisadores como a americana Mary Temple Grandin, que esteve em São Paulo no início de maio para uma série de encontros com pesquisadores e produtores rurais, animais estressados, peões nervosos, mangueiras em estado de conservação precária, currais inadequados, transporte ineficiente e insensibilização malfeita no momento do abate de bovinos são cenas dantescas que precisam ficar no passado. Temple Grandin, como é conhecida, é a maior autoridade do mundo em bem-estar animal, disciplina segundo a qual as técnicas adequadas de manejo evitam o sofrimento no campo e geram lucro ao produtor. “Animais calmos ganham mais peso, o que já foi provado em muitos estudos”, diz Temple Grandin. “Animais agitados não somente perdem peso como terão uma carne mais dura após o abate.” Nos encontros com os brasileiros, realizados na capital paulista e em dois eventos na região de Ribeirão Preto, Temple Grandin falou sobre o impacto do estresse nos índices produtivos e reprodutivos do rebanho e da qualidade da carne.

O que parece óbvio nos dias atuais para muitas pessoas é resultado de uma vida inteira dedicada às pesquisas em pecuária realizadas por Temple Grandin. A americana, 66 anos, que é psicóloga e pós- doutorada em zootecnia, foi listada, em 2010, pela revista Time como uma das 100 personalidades mais influentes do mundo, na categoria Heróis. Por conta de seu trabalho, desde o fim dos anos 1990, época em que o conceito de bem-estar animal começou a ser discutido, Temple Gradin já ganhou um séquito de admiradores no Brasil. Entre eles está o pesquisador e professor Mateus Paranhos, do Grupo de Estudos em Etologia e Ecologia Animal (ETCO), da Unesp de Jaboticabal, no interior de São Paulo. Segundo Paranhos, que já conduziu estudos comprovando a perda de dinheiro provocada pelo manejo inadequado de bovinos, a pressão crescente de uma sociedade preocupada com o modo como os animais são criados está forjando uma nova percepção sobre o tema. “Tivemos, sem dúvida, um grande avanço nas práticas de bem-estar animal na pecuária brasileira”, diz Paranhos. “Mas ainda falta informação aos produtores.” O professor acredita que a porção dos pecuaristas cientes dos ganhos proporcionados pelas boas práticas no campo ainda é restrita, não ultrapassando os 20%. De acordo com o IBGE, o País tem cerca de dois milhões de propriedades voltadas à produção de bois.

Quem já aderiu à pratica do bem-estar animal contabiliza os ganhos. É o caso da pecuarista Carmen Perez, da fazenda Orvalho das Flores, no município de Barra do Garças, em Mato Grosso. Carmen promoveu algumas mudanças simples, mas efetivas, na propriedade. Na equipe de peões da fazenda, que passou por treinamento, os paus usados no manejo do rebanho deram lugar a bandeiras que orientam os animais no curral no momento das vacinas e na pesagem. Nos piquetes-maternidade foram construídos pequenos cercados de madeira para tratar do umbigo dos bezerros recém-nascidos e proceder à sua identificação. “Hoje, nenhuma vaca e sua cria são levadas para o curral, onde o risco de acidentes é grande para animais e peões”, diz Carmen. Ela sabe do que está falando. Em 2007, um de seus funcionários quebrou uma costela e a perna num manejo dentro do curral, o que lhe rendeu uma ação trabalhista no valor de R$ 110 mil.

Na fazenda Orvalho das Flores, a tranquilidade na nova relação entre vaqueiros e animais refletiu-se na rentabilidade do negócio. “Conseguimos aumentar em 20 quilos o peso de desmama dos nossos bezerros”, diz Carmen. Com um rebanho de duas mil matrizes nelore, são produzidos ali 1,7 mil bezerros, filhos dessas fêmeas com touros charoleses, a cada safra. Em decorrência do peso extra dos
animais vendidos, Carmen consegue um acréscimo de R$ 187 mil por ano, na renda da propriedade, tomando como base a venda dos bezerros na região de Barra do Garças. Os ganhos também podem ser medidos pela redução de gastos. Em uma fazenda de cria, como é o caso da Orvalho das Flores, o principal fator do aumento de custos é a mortalidade de bezerros. “Tínhamos uma perda de 8%, considerando desde o momento da apalpação da vaca para conferir a prenhez até a desmama da cria”, diz Carmen. “Hoje,  estamos ao redor de 3,5%.”

Segundo Murilo Quintiliano, diretor no Brasil da Food Animal Initiative (FAI), empresa que reúne cientistas, consultores e produtores, e que presta assessoria em propriedades na Europa, América do Norte
e do Sul e Ásia, o fator de maior impacto econômico de uma fazenda de cria é justamente a mortalidade de bezerros. Numa propriedade de mil vacas, por exemplo, 2% de perdas representam 20 bezerros a menos na safra. Em valores, significa um buraco de R$ 21 mil nas contas, considerando R$ 1.050 como o preço médio de um bezerro no mercado. Se a taxa subir para 12% de mortalidade, o que não é incomum nas propriedades brasileiras, significaria a perda de 120 bezerros e um prejuízo de R$ 126 mil. “Não importa o tamanho da propriedade, perder bezerros é sempre um mau negócio”, diz Quintiliano.

Para o veterinário André Dayan, CEO da Kontentor, com sede em Cravinhos (SP), empresa que trouxe Temple Grandin ao País, o bem-estar animal, além de turbinar as receitas na fazenda, reflete-se em toda a cadeia produtiva da carne. “Passa pelo antes da porteira, com equipamentos adequados, até o frigorífico”, diz Dayan. A Kontentor, de origem americana, fabrica equipamentos como troncos hidráulicos para a contenção de animais nos currais de manejo, utilizando os princípios de Temple Grandin. No Brasil, estudos recentes do Grupo ETCO indicam que as perdas de carne em razão das falhas no manejo pré-abate ocorrem de modo preocupante. Levantamentos feitos em frigoríficos nos Estados de São Paulo, Mato Grosso e Minas Gerais mostram que 66% dos animais levados ao abate apresentam pelo menos um hematoma no corpo. Segundo o estudo, cada hematoma representa o descarte de meio quilo de carne, em média. Para um total de 48 milhões de bovinos abatidos por ano, no Brasil, um simples hematoma por animal poderia levar a uma perda de 15 mil toneladas de carne. Em valores, o número é ainda mais assustador. Com o preço médio da carne a R$ 7 por quilo no mercado atacadista, o desperdício anual de dinheiro seria de R$ 104 milhões. “É muita grana jogada no lixo”, diz Quintiliano. Sem contar o que é desclassificado nos frigoríficos, devido a perdas qualitativas da carne, como pH elevado do produto, outra consequência dos maus-tratos aos animais. O pH, que mede a acidez da carne, é um importante parâmetro de qualidade já que ele tem influência sobre a cor, a apacidade de retenção de água e a sua maciez.

Por isso, os frigoríficos também têm se preocupado em fazer a lição de casa. O JBS, da holding J&F, por exemplo, adotou procedimentos de bem-estar animal em todas as suas unidades. A capacidade de abate do JBS é de 40 mil animais por dia, em 43 frigoríficos no País. “Atualmente, todas as nossas instalações têm por objetivo reduzir o estresse dos animais”, afirma Everton Andrade, coordenador corporativo de bem-estar animal da JBS. “Temos câmeras de monitoramento nos currais e nas salas de abate para verificar todos os indicadores de bem-estar animal.” No mês passado, além de palestras e encontros, Temple Grandin assinou um termo de cooperação técnica com a empresa, para intensificar e aprimorar o trabalho de manejo no País. Pelo acordo, a especialista, que já mantém parceria com a JBS nos Estados Unidos, validará as práticas de bem-estar animal adotadas no Brasil, com acompanhamento do professor Paranhos.

Além do frigorífico, o apelo ao bem-estar animal tem ganhado um reforço de peso na ponta da cadeia produtiva, nos últimos anos. Grandes empresas, como McDonald’s, KFC, Tesco, Carrefour e Unilever, vêm sendo pressionadas por seus clientes a assumirem uma postura pró-bemestar animal. “Num efeito cascata, a pressão do consumidor é repassada para frigoríficos e fazendeiros”, diz Quintiliano. Gustavo Faria, gerente de abastecimento da Arcos Dorados, holding do McDonald’s na América Latina, e que no Brasil possui 815 lojas, afirma que todos os fornecedores de produtos de origem animal são auditados anualmente por empresas terceirizadas para manter os padrões de bem-estar esperados. “Se não há cumprimento dos requisitos, o fornecedor é suspenso até que as ações corretivas sejam implementadas efetivamente”, diz Faria. “Pelo visto, bem-estar animal é um pré-requisito sem volta no mercado.”