No campo há 29 milhões de habitantes. Esse contingente equivale a 14% da população brasileira, de acordo com a mais recente projeção do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), feita para o ano de 2015. Parte dessas pessoas, o grupo economicamente ativo, produz um terço do Produto Interno Bruto do País. Não há pesquisas recentes, mas um estudo de três anos atrás mostra que há cerca de 13,9 milhões de trabalhadores em propriedades rurais, em cinco milhões de estabelecimentos, segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Sem contar proprietários e o grupo que vive sem remuneração, 1,8 milhão de pessoas, os assalariados são cerca de quatro milhões, dos quais metade está na informalidade, além de 3,9 milhões que trabalham por conta própria. Outro tanto, cerca de 4,2 milhões produzem para o próprio consumo e muitas vezes são prestadores de serviços em outras propriedades. Leis justas que regem o trabalho desse batalhão de pessoas tem sido um desafio para o País, que sempre legislou o campo pela ótica do trabalho urbano, principalmente a partir do ano de 1943, quando foi criada a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Ou seja, está tudo muito velho e ultrapassado o que ocorre nessa seara. “Nós temos no campo a aplicação direta da CLT, que foi elaborada para a cidade e não leva em consideração as especificidades que ocorrem no campo”, diz a agrônoma Mônika Bergamaschi, presidente do Instituto Brasileiro para Inovação e Sustentabilidade do Agronegócio (Ibisa), e secretária de Agricultura do Estado de São Paulo entre 2011 e 2015, a primeira mulher a ocupar o cargo. Nos últimos tempos, com as discussões sobre as mudanças das leis trabalhistas para toda a sociedade, está dado um novo momento para pensar quais as melhores práticas para quem depende do trabalhador rural ou é um deles. Há cinco anos, Bergamaschi foi convidada pela Associação Brasileira de Agribusiness de Ribeirão Preto (Abag-RP), para estudar o tema juntamente com a colaboração da unidade Monitoramento por Satélite da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). “Há dezenas de projetos que hoje tramitam no Congresso. Alguns convergentes com os desejos do agronegócio, outros divergentes. O que propomos é fazer um código novo, dedicado ao setor, e que dê segurança ao produtor para continuar não só trabalhando, mas investindo e gerando novos empregos.”

Uma das mais polêmicas propostas foi apresentada pelo deputado federal Nilson Leitão (PSDB-MT), presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). Com o objetivo de discutir cerca de 190 pontos que estão fora da proposta de reforma oficial do governo, mas que hoje consta nas leis trabalhistas, o Projeto de Lei 6.442 foi praticamente abandonado desde maio, acusado intensamente nas redes sociais de possibilitar o trabalho análogo ao escravo, em função de artigos relativos à remuneração de qualquer espécie, jornada intermitente de 18 dias, venda total das férias, entre outros itens propostos. “O texto foi mal interpretado“, afirma Leitão. Embora o projeto tenha sido tirado do centro dos debates, o fato é que precisam de respostas à sociedade cerca de 190 pontos da atual lei trabalhista com repercussão no campo. “As leis ao campo precisam ser alteradas, pois, de cada dez trabalhadores, seis estão na informalidade”, afirma Leitão. Alterar o conjunto de leis trabalhistas rurais é importante, dada as diferentes relações que existem atualmente. Mas como fazer isso sem precarizar o trabalho? Para a advogada Julia Pereira, do escritório Trench Rossi Watanabe, uma lei nesse sentido deve restabelecer o poder de negociação dos sindicatos e regularizar os vários formatos de contratação atual, trazendo para dentro da jurisprudência o que hoje é ilegal. “É preciso segurança jurídica”, diz Pereira. “Porque o formato do labor, o deslocamento, o horário de intervalo entre o trabalho rural e o urbano são diferentes.”

Para Álvaro Dilli, diretor de recursos humanos na SLC Agrícola, grupo gaúcho controlado pela família Logemann, que no ano passado faturou R$ 1,6 bilhão, seria positivo para o setor do agronegócio a flexibilização das leis no campo. “Por exemplo, a jornada de seis dias trabalhados, por um de descanso, não é factível ao campo, que depende da sazonalidade das culturas”, afirma Dilli. “Há a época de plantar e colher, que pode ser no domingo. A possibilidade temporária de trabalhar 12 horas, em casos de emergência, é importante” Por exemplo, ao ser contratado, um empregado deve passar por exame médico em até 48 horas, sob pena de multa ao empregador. “Há fazendas muito distantes das cidades”, afirma. “É muito complicado cumprir o que manda o Serviço Especializado em Segurança e Saúde no Trabalho Rural porque, além da distância, pode haver falta de um médico do trabalho em uma localidade.” Na prática, há uma imensa dificuldade para cumprir as regras dessa portaria de 2005, a chamada Norma Regulamentadora 31 (NR 31), com exigências técnicas específicas para o campo. A SLC, que cultiva cerca de 300 mil hectares de milho, soja e algodão em 15 fazendas, em seis Estados, possui 2,3 mil empregados fixos e mil temporários. No ano passado, a empresa ficou em primeiro lugar em Gestão Corporativa no prêmio AS MELHORES DA DINHEIRO RURAL, na categoria Agronegócio Direto – Grandes Empresas.

De acordo com Cristiano Zaranza, advogado da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), as normas atuais são, no mínimo, abusivas para quem contrata por safra. “Como assinar duas mil carteiras em 48 horas?”, diz ele. O fato é que nas últimas décadas instalaram-se novos modos de produção, criando uma necessidade urgente na modernização das relações de trabalho para poder acompanhar o crescimento do agronegócio no Brasil. O País precisa resolver como serão as relações no campo, sob pena de enfrentar um êxodo rural ainda maior daqui para a frente. Hoje, nas cidades do País estão 175,4 milhões, 85,8% do total da população. Mas serão 92% em 2050, equivalentes 208,2 milhões de pessoas, pelas previsões do Dieese. Os 8% da população rural serão 18,1 milhões de habitantes. Embora essa população rural vá diminuir porcentualmente nas próximas três décadas, ela não pode ser desprezada. Essa quantidade de pessoas equivale hoje à população de países como o Chile ou a Holanda, por exemplo. Para Bergamaschi, está dado o momento para entender quais os diversos pontos de como é estruturado o trabalho rural e estabelecer um alicerce sobre o qual construir o futuro do agronegócio. “Que é o futuro do Brasil”, diz ela. Zaranza, por exemplo, afirma que a CNA defende a possibilidade de flexibilizar direitos mediante negociação coletiva. No caso do trabalho avançar além das oito horas, há a simplicidade da adoção de um banco de horas. “Como acontece com o trabalhador urbano”, diz Zaranza. Para Leitão, a medida não caracteriza trabalho escravo. “Quem decide a hora de plantar e colher é a natureza”, diz ele. “Um trabalhador pode cumprir no máximo oito horas e, após uma intempérie ou a necessidade imediata de um plantio, por exemplo, fazer mais quatro horas recebendo todos os direitos.”

Para Maurício Ferreira Brito, coordenador nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (Conaete) do Ministério Público do Trabalho (MPT), não pode haver danos nas relações trabalhistas entre empregados e empregadores no campo. Novas regras precisam ser bem calculadas. “Por exemplo, não é possível aceitar remuneração por qualquer espécie ou venda integral de férias”, afirma Brito. “São pontos que violam as convenções da Organização Internacional do Trabalho.” Esse é um dos pontos sensíveis sobre mudanças trabalhistas. O agronegócio brasileiro, com muita frequência, tem sua imagem arranhada como promotor do trabalho escravo. De acordo com a Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae), na última década e meia, a média de propriedades rurais fiscalizadas foi de 263, por ano, em função de denúncias. Nos últimos três anos, a média subiu para 290. Para Bergamaschi, o País precisa avançar, sob pena de perda de competividade do agronegócio em função da legislação trabalhista. “Porque ainda há muitas outras questões a serem acertadas, como por exemplo o tempo de jornada incluindo o deslocamento do profissional, ou as cotas, como as de aprendizes e deficientes”, afirma Bergamaschi. “Lembrando que a ideia de uma reforma não é para tirar qualquer direito do trabalhador rural. Reformar não é precarizar as atuais relações de trabalho. É se modernizar.”